SÔNIA GUAJAJARA

29/05/2023 - -

Líder indígena e política brasileira, Sônia é coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Graduada em Letras e Enfermagem, e especialista em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão. Em 2022, foi nomeada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Em 2023, tornou-se ministra dos Povos Indígenas do governo Lula.

Sônia, você desde muito cedo está na linha de frente da luta pela garantia dos direitos dos povos indígenas. São quase duas décadas de ativismo, na luta contra a invisibilidade que é imposta pela sociedade sobre os povos originários. Gostaríamos, portanto, de iniciar nossa conversa falando sobre a sua trajetória como mulher indígena no Brasil. De que forma você iniciou o seu envolvimento na luta política pelos direitos indígenas?

É até difícil sinalizar um momento em que eu me entendi nessa luta, porque para mim é uma rotina, uma sequência diária. Estou sempre defendendo alguma coisa e tentando entrar nos espaços que se mostram fechados. Isso foi uma constante em minha vida. Mas acho que tem um momento que eu comecei a entender que existia um movimento indígena organizado: foi em 2001, quando eu participei do Primeiro Movimento Indígena Nacional. Foi uma conferência pós-marcha.

Em 2000, tivemos a Marcha dos 500 anos, “Brasil, outros 500”. Essa marcha para Porto Seguro reuniu indígenas de todo o Brasil, que saíram em caravanas e se reuniram para a “contracomemoração” dos 500 anos. Naquele momento, houve uma grande briga interna no movimento indígena, porque o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso concordou com algumas lideranças indígenas para apoiar o seu governo, enquanto outra parte do movimento não concordou.

Ali houve também um confronto direto com a polícia, que tentou atacar os acampamentos do movimento. Era para ser um momento pacífico, de memorização dos 500 anos e acabou sendo muito violento. Indígenas apanharam da polícia, assim como militantes e integrantes dos movimentos sociais. Foi um momento marcante não somente pela data em si, mas pela confusão e violência que constituíram esses 500 anos de Brasil, as quais foram retratadas naquele momento.

Em 2001, a Conferência avaliou os 500 anos e pensou os rumos do movimento indígena, já que tivemos quase um racha. Foi a primeira vez que vim para o Movimento Nacional em Brasília. Ali eu escutei, prestei atenção e entendi a necessidade de fazer a luta pela terra. Foi o momento em que descobri que existiam indígenas sem-terra, sem-terra demarcada, vivendo em retomadas, em acampamentos, na beira da estrada, sem suas aldeias... Antes, eu conhecia apenas o meu mundo, a minha terra, o meu estado. Aquilo me inquietou e eu voltei pensando: eu não posso mais ser a mesma, tenho de voltar, organizar meu estado – o Maranhão – e fazer a luta de uma forma mais ampla. Voltei de ônibus com a cabeça fervilhando.

Quando eu cheguei, chamei lideranças do estado e de outros povos, e assim começamos a conversar. Eu não tinha noção de como organizar um movimento, ia perguntando e descobrindo. Juntamos 15 lideranças e começamos a discutir o movimento indígena no estado do Maranhão. Dessas 15, sobraram cinco, e fizemos uma assembleia, em 2002, para discutir a criação de um movimento indígena organizado no Maranhão. Fizemos uma grande assembleia, até hoje não sei como reunimos tanta gente sem ter recurso e apoio. Alguém pagou a comida, outro, o combustível. Planejamos o encontro para 70 pessoas e tivemos 150 presentes. Foi um momento incrível.

No ano seguinte, em 2003, fizemos a assembleia para criar a organização de fato. Eu era integrante da diretoria. Naquele momento, as pessoas ainda viam as mulheres no movimento como “as secretárias”. Eu fiquei como “diretora secretária” dentro da coordenação executiva, porque só isso que nos era permitido. Fiquei dois mandatos no Maranhão exercendo essa função. Meu papel foi muito importante no movimento e no estado, porque conseguimos mobilizar todas as bases. Eu rodei todas as cidades do Maranhão, todos os povos, oferecemos cursos... Tudo isso por meio da articulação com outros movimentos e apoiadores, sem recursos.

Com esse trabalho, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) percebeu que eu estava mobilizando bem e, no último ano, me convidaram para compor a coordenação executiva, mas, de novo, me chamaram para ser secretária. Primeiro eu relutei, mas depois aceitei sem questionar muito. Quando eu contei para as outras mulheres, elas falaram que eu não podia ser secretária, que elas só me apoiariam se me tornasse Coordenadora Geral ou vice. Eu concordei e percebi que dava conta. Avisei aos meninos que eu ia concorrer a vice, eles falaram que já tinha uma pessoa para o cargo, mas eu disse que a assembleia é soberana e eu ia disputar os votos. Éramos três na disputa, eu e mais dois homens, duas lideranças tradicionais. Eu tive mais votos do que o dobro dos dois somados.

Essa saída do contexto somente do Maranhão para a Amazônia como um todo me fez entender a lógica e o que estava em jogo. Foi quando eu comecei a participar na luta climática. A COIAB foi como uma universidade do movimento, porque foi ali que eu comecei essa relação de articulação internacional. Eu fiquei somente um mandato e decidi voltar para o Maranhão, em 2013. Na parada em Brasília, fui eleita executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Não consegui sequer chegar em casa, ali mesmo em Brasília, eu já fiquei. Agora estou no nono ano da APIB. Quando terminei o primeiro mandato, comecei a articular minha participação na política partidária e, em 2018, me afastei da APIB por um ano para concorrer à presidência do Brasil, como vice. Em 2019, voltei e estou lá até o mês de agosto, quando meu ciclo se encerra.

Para mim, o que alçamos até hoje de reconhecimento é resultado de toda essa trajetória e das ações coletivas que fizeram o passo a passo, do regional ao nacional e com repercussão internacional. Como o Guilherme Boulos fala, não se trata de uma corrida de 100 metros, é uma maratona gigante, que corremos todo dia. É um conjunto que se soma: o apoio da família, de pessoas de confiança, da base territorial que nos coloca para cima, da capacidade de articular com outros movimentos... Essa articulação para nós ainda é difícil, porque poucas lideranças têm essa flexibilidade de se relacionar com outros movimentos. Eu sempre tive muito cuidado com isso, entendendo que nós, como movimento indígena, não conseguiríamos fortalecer nossa luta sem fazer parcerias com outros movimentos. Hoje nós somos, enquanto movimento social no Brasil, um dos mais fortes, principalmente na luta contra o governo Bolsonaro.

Além de atuar como coordenadora executiva da APIB, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, você também é cofundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (AnmigaOrg). Você poderia falar sobre o seu trabalho junto a essas organizações? E de que formas essas atuam dentro da política, pela garantia de direitos e amplificação das vozes dos povos indígenas?

A APIB é uma articulação nacional, criada há 18 anos, e composta por organizações macrorregionais. Nós temos apenas sete coordenadores executivos, cada um vindo de sete organizações diferentes que a compõem. Eu, por exemplo, represento a COIAB dentro da APIB. Nós temos um fórum nacional de lideranças, um encontro que fazemos por indicações dessas organizações. Nele discutimos nossas prioridades anuais, o que está em jogo no Congresso, no Executivo e em quais ações podemos entrar no Judiciário; fazemos uma análise geral do que está posto para o ano. Por exemplo, ano passado Bolsonaro apresentou as 31 prioridades de seu governo. Nós estávamos em todas, menos na política cambial. Eu disse: “Aí é que vocês se enganam, nessa que a gente está”. Porque ele queria mudar a forma de receber os recursos internacionais, visando dificultar o acesso aos recursos que fortalecem as mobilizações. O que aparentemente não tinha nada a ver conosco, na hora percebi que era uma estratégia para inviabilizar a nossa luta.

A gente fica alerta o tempo todo e faz o embate direto no Congresso para impedir essas medidas anti-indígenas e antiambientalistas de tramitarem. Fazemos um apanhado geral do que pode nos impactar, sejam portarias, medidas provisórias, projetos de lei, projeto de emenda da Constituição... Avaliamos com nossos advogados a parte jurídica e nos organizamos para enfrentar uma por uma. Nos articulamos com os assessores dos parlamentares que estão dentro do nosso campo no Congresso e fazemos parcerias com entidades de apoio. Temos um grupo chamado Mobilização Nacional Indígena, com mais de 40 entidades no Brasil que se reúne toda segunda-feira para, a partir de análise da conjuntura, organizar a semana. Fazemos também o Acampamento Terra Livre, que é a assembleia máxima dos povos indígenas no Brasil, em que consolidamos nossas ideias com todos, aprovamos as pautas e seguimos na pressão com as marchas.

Então, a APIB acompanha toda a política nacional, indigenista e ambiental. Nem sempre a gente ganha, porque as bancadas contrárias são muito maiores, mas já conseguimos vetar muitas políticas contrárias com a nossa presença permanente em Brasília. Esse retrocesso só não está pior por causa dessa pressão exercida; pelo acompanhamento e articulação que fazemos dentro do Congresso, com as entidades de apoio e com a comunidade internacional. Trabalhamos sempre com essas três redes.

A articulação das mulheres indígenas existe desde sempre. Quando eu cheguei no movimento, já existia. Mas nunca tivemos um nome, uma identidade. No contexto da pandemia, em uma de nossas discussões on-line, falei que precisávamos de um nome para fazer um recorte das mulheres dentro da APIB. Em 2021, quando saiu a vacina, propus fazer um fevereiro de lives para orientar sobre a importância da vacina. Eu chamei as mulheres do movimento e fizemos lives semanais para cada bioma. Uma semana era Amazônia, na outra era o Cerrado, na outra, a Mata Atlântica... Falamos sobre a importância da vacina e desmanchamos as mentiras. Chamamos de “Vacina, Parente!”.

Em março, no mês das mulheres, seguimos com as lives e começamos a pensar em um nome. Pensei nesse nome de “AMIGA”, mas o que seria o “GA”? “Guerreiras da ancestralidade! Combinou muito! Pegou bem, todo mundo gostou. Criamos a ANMIGA dia 8 de março de 2021. Já criamos lançando um site com o histórico e fizemos o março das Originárias da Terra. Fizemos uma live de lançamento com 80 mulheres falando, foram 8 blocos de 10 mulheres. Começou às 15h e terminou às 21h! Eu comecei lá no Maranhão, fazendo a abertura, viajei para o Rio de Janeiro e, no Rio, fiz o encerramento. Foi muito legal, as mulheres se animaram.

Ano passado realizamos a nossa segunda marcha, porque a primeira ainda não era formalizada como ANMIGA. Este ano, estamos organizando a caravana das Originárias, que já está em circulação. Ela está agora no Nordeste e vai rodar todas as regiões para mobilizar todas as mulheres territoriais. Temos as mulheres “Raiz”, que estão na base, na aldeia e são do território. Toda terra indígena e todos os povos têm uma mulher representando, às vezes, têm mais de uma. Temos as mulheres “Semente”, que estão nos estados. Temos as mulheres “Biomas”, uma para cada bioma, as quais formam um conselho menor e mais emergencial. Temos as mulheres “Terra”, que foram as criadoras da ANMIGA. Elas são referência para tudo o que fazemos, e agora estão circulando na caravana. Por fim, temos as mulheres “Água”, que nos representam no nível internacional; ultrapassam fronteiras e oceanos. Assim, podemos atingir todos os povos e todos os níveis de contato e participação das mulheres.

A caravana resume bem o que temos como pauta: a participação das mulheres na política – o papel das mulheres indígenas frente às mudanças climáticas; a valorização da sociobioeconomia das mulheres; o combate às violências de gênero e doméstica; e o fortalecimento de redes. A ideia da caravana também foi minha, com o intuito de fazer algo mais amplo e democrático. As meninas me perguntaram como faríamos sem recursos, eu respondi: “Basta ter a ideia, depois o dinheiro chega”.

Agora estamos em processo de finalizar a candidatura das mulheres indígenas, vamos fortalecer a Bancada do Cocar. Nossa pré-campanha é o Chamado pela Terra, com o objetivo de fortalecer a participação das mulheres na política.

Você foi recentemente nomeada pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Em uma sociedade em que vozes indígenas são duramente silenciadas e cujas raízes sofrem, há mais de 500 anos, com processos históricos de preconceito e deslegitimação, a projeção nacional e internacional de uma liderança feminina e indígena demonstra-se de extrema importância – a qual sabemos que é resultado de anos de resistência, lutas e esforços somados. Como você vê esse reconhecimento por grandes veículos de comunicação e pela comunidade internacional, em relação a como sua luta é vista localmente? E como usar esse momento para dar mais visibilidade e reconhecimento à questão indígena no Brasil?

Isso foi realmente incrível. Não estávamos esperando esse resultado. São tantas pessoas hoje na luta, que receber essa nomeação não estava em nosso radar. Essa notícia mostra que nossos esforços valem a pena. Às vezes achamos que não estamos tendo resultado, que está difícil, mas, ao recebermos esse reconhecimento, percebemos que é preciso fortalecer ainda mais.

Não é fácil alcançar determinados espaços. A própria mídia aqui no Brasil demorou a enxergar a realidade indígena como notícia. Primeiro atravessamos as fronteiras nacionais, chegamos no internacional para depois poder voltar. Quando vem de fora, o Brasil reconhece a pauta. Agora, acho que melhorou um pouco esse cenário, já conseguimos mais acesso. Isso é muito importante, porque nos encoraja a seguir, mostra um resultado das ações coletivas e de como é importante a articulação com grupos diversos. Com isso, conseguimos alcançar um público que jamais alcançaríamos apenas com os nossos meios.

Não queremos ter visibilidade para estar em uma capa de revista, mas para transformar a nossa realidade. Se as pessoas conhecerem e se interessarem, vão aderir à causa. Uma das coisas que mais queremos aproveitar é a oportunidade de mostrar o papel desempenhado pelos povos indígenas para toda a humanidade e para o planeta. As pessoas não sabem o quanto o modo de vida indígena contribui para o clima, para o planeta, para a preservação da biodiversidade. Poucas pessoas da cidade conectam suas vidas a quem está fazendo essa luta diariamente. Queremos aproveitar o momento para fazer com que as pessoas tenham essa sensibilidade e essa compreensão de que a luta indígena é humanitária, civilizatória e para o bem do planeta. É urgente essa conexão ou reconexão com a terra enquanto mãe e não como lote, ou objeto. Por isso nossa campanha se chama o “Chamado pela Terra”. Nós, indígenas, que escutamos esse chamado, entendemos que precisamos convocar os outros também. 

Essa visibilidade que você está tendo se intersecta com a representatividade de mulheres indígenas. Muito tem se avançado na luta pelo reconhecimento e igualdade de gêneros, mas ainda há um longo caminho a percorrer. De que forma, você, como liderança indígena feminina, enxerga a necessidade de articulação de mulheres indígenas, assim como o fortalecimento de questões relacionadas ao gênero, sua cultura e identidade?

Uma coisa que temos feito nessa articulação e nessa alavancada que as mulheres estão dando é ter cuidado para que isso não seja entendido como uma disputa entre mulheres e homens. Não é uma disputa para as mulheres estarem à frente, queremos complementar a luta. Não dá mais para entender como cultural a não participação das mulheres. Historicamente isso foi dado como algo cultural, como se fosse natural sermos subservientes, estarmos em papéis subalternos e que determinados povos não aceitem mulheres no papel de liderança. Isso não é cultura, isso é o machismo impregnado, que chegou em nosso território também como herança colonial. Nós fomos entendendo a necessidade de estar perto, de estar junto, de assumir esses papéis e o protagonismo da nossa própria história. O momento é de fortalecer a luta como um todo, não de dividir e separar papéis, mas sermos complementares.

Fazemos a Marcha das Mulheres, por exemplo, mas sempre convidamos os homens para conhecer o que estamos fazendo. Quando lutamos pelo combate à violência, são eles que têm de escutar, eles que tem de mudar. Eles também precisam estar perto, construindo junto, senão a discussão fica fechada em nós mesmas. Na última marcha quase metade dos participantes eram homens. Eles fazem questão de vir para fazer segurança, para cozinhar para nós, sabendo que o palco não é deles. Eu mesma falo toda vez: “O microfone é das mulheres, homens não podem nem dar um recado. A hora é nossa”.

Aprofundando sobre esse histórico processo de invisibilização, sabemos que a narrativa tradicionalmente contada da história brasileira apresenta uma visão extremamente pautada por ideias como a do “descobrimento”, a da “domesticação de um estado primitivo de natureza” e a do “engrandecimento do homem colonizador iluminado”, enquanto a história de verdade é uma de massacre, sequestro e desconstrução do que havia naquela terra. Esse distanciamento entre a realidade e a história dos povos originários brasileiros, em relação àquela que é predominantemente conhecida pela sociedade, cria uma barreira difícil de se transpor, a qual é reerguida todos os dias por nosso sistema educacional, por exemplo, e as nossas práticas diárias. Quais são os maiores desafios que você vê para substituição dessa história inventada por uma história real das origens do Brasil?

Eu acho que não tem mais como mudar o pensamento das pessoas dessa geração. Elas podem até se tornar mais sensíveis, mas não vão ter organicidade para entender e abraçar essa causa. Para mim, o investimento precisa ser nas crianças e na juventude atual, para podermos mudar uma geração inteira. Isso precisa estar muito estabelecido no sistema educacional, desde o ensino básico até a universidade. É impressionante como as escolas ainda não mudaram seus currículos e continuam com livros didáticos que tratam os povos indígenas como povos do passado. Se você conversar com uma criança das primeiras séries, elas falam “os índios usam pena”. É uma imagem bem estereotipada do “índio” de cara pintada celebrado no 19 de abril, e não dos “indígenas” – uma mudança que já está reconhecida até na Constituição. É inadmissível essa reprodução de uma história de 1500 sem falar do indígena presente hoje, das lutas, dos desafios e dificuldades enfrentados. Temos uma lei que estabelece o ensino afro-indígena na escola, a Lei 11.645, de 2008, mas essa lei não é implementada por falta de professores especialistas para tratar esse conteúdo nas escolas.

Essa lei precisa ser aplicada. As escolas precisam abrir espaço para os indígenas falarem. Elas só reconhecem como professor aquele que tem o diploma acadêmico. Tanto a escola básica quanto a universidade precisam abrir espaço para o indígena falar da sua história, diversidade, cultura... É conceber o conhecimento tradicional indígena como saber. Hoje já avançamos um pouco, eu sou chamada para várias universidades. Nós estamos indo como palestrantes e convidados, o que já é um avanço, mas não é o suficiente. Os indígenas precisam estar também nos quadros de professores. Os indígenas que se formam nas universidades também precisam ocupar o papel de professor, de diretor, de reitor. Por que o indígena não pode? Ele deveria concorrer como igual, mas isso ainda não é visto como normal, ainda é estranha essa presença. O primeiro passo é a abertura dos estabelecimentos de ensino para conseguirmos mudar a próxima geração; dos que já estão com a cabeça formada precisamos nos aproximar e formar parcerias.


Em relação ao contexto político atual, marcado por um governo hiperconservador, abertamente anti-indígena e contra qualquer causa socioambiental: qual a sua avaliação sobre as diversas tentativas de retrocesso em relação aos direitos conquistados pelos indígenas e aos avanços relacionados à proteção do meio ambiente? E quais desafios que, passados quatro anos de governo Bolsonaro, o atual momento deixa para os povos indígenas?

De fato, esse governo trouxe muitos prejuízos. No primeiro dia de governo, Bolsonaro já atacou os direitos indígenas estabelecendo uma portaria acabando com a FUNAI, tirando a demarcação de terras indígenas e nos colocando sob jurisdição do Ministério da Agricultura, que é comandado pela bancada ruralista. Ali ele materializou o que prometeu em campanha: que não haveria em seu governo nem um centímetro de terra demarcada para os indígenas. Tudo o que era ameaça de campanha virou política pública. Como se não fosse suficiente, ele abriu precedentes para reaver territórios já demarcados. Esse foi o primeiro e o pior ataque, porque para nós o território é essencial para manter a nossa existência. Ele já fez um desmonte não só de direitos, mas do próprio futuro dos povos indígenas.

A política ambiental também foi totalmente desmontada por meio de projetos de leis que flexibilizam a legislação ambiental e permitem grilagem e desmatamento. O ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales, foi nas regiões onde havia denúncias e, ao invés de punir os invasores, ele anistiou multas dadas pelo IBAMA. Aquele pronunciamento dele na reunião secreta, de aproveitar a pandemia para “passar a boiada”, parece cena de um filme de ficção. O governo Bolsonaro é um governo de destruição. Não é aleatório, não é porque ele não sabe fazer; ele sabe bem o que quer e como se articular. Ele é porta-voz do agronegócio, da exploração predatória, do garimpo ilegal, da mineração e da grilagem de terra.

Em 2022, estamos em total apoio a Lula, entendendo que é o que temos no momento para derrotar Bolsonaro. É urgente, precisamos tirar Bolsonaro do poder e seguir apoiando o governo, como movimento social, para tirar o bolsonarismo de dentro das instituições. As instituições estão impregnadas com esses pensamentos, se não forem renomeadas não teremos um governo capaz de reconstruir.

Outra coisa importante é fazer um trabalho intenso para trocar os parlamentares aliados de Bolsonaro. Estamos trabalhando duramente para eleger bancadas diversas, que representem os povos, as culturas, a sociedade. É preciso uma mudança estrutural. Estamos apoiando Lula não por enxergarmos nele a salvação para tudo, mas porque queremos participar, incidir e ter opinião direta em uma futura mudança.Muitas pessoas nos questionam sobre o que Lula fez ou deixou de fazer quanto à demarcação das terras ou à construção de Belo Monte, mas uma coisa é ter um governo que diverge em opiniões, outra é ter um governo inimigo declarado, que mata, que reforça o fascismo, que incita o ódio. Com Bolsonaro, hoje, você está apoiando um autoritarismo que vai seguir com essa política de destruição. A hora agora é de lutar para não perder a democracia que conquistamos.

A realidade dos povos indígenas brasileiros é ainda, infelizmente, marcada por inúmeros atos explícitos de violência: ataques, invasões, ameaças e incêndios. Vivenciamos no atual momento um cenário lastimável que é, por exemplo, o ataque às terras Yanomami, com o avanço do garimpo ilegal dentro de suas áreas. Outro tipo de violência, no entanto, que aparece mais silenciosamente na mídia, foi a causada pela falta de resposta adequada do governo à pandemia. O que as pessoas que não estão conectadas às questões indígenas precisam saber sobre essas duas formas de violência? Você pode nos explicar como foi, e está sendo, essa forma de violência causada durante a pandemia e essa nova onda de agressões que estamos vendo hoje?

Nós temos esses dois tipos de violência: a que é escancarada, que alarma todo mundo, o tiro, o estupro, os conflitos permanentes; e a negligência, ou até o planejamento da omissão. Tem um planejamento para não atender. Esse caso da criança Yanomami foi alarmante, com repercussão internacional, e as pessoas estão olhando para esse caso agora. Mas esse é apenas um retrato do que acontece diariamente em todos os territórios, por causa da falta de segurança, da falta de proteção.

Antigamente, dizíamos que a nossa maior luta era demarcar terras indígenas. Continua sendo, a não demarcação é também uma violência. É uma ação do Estado, silenciosa, mas igualmente violenta. Sem a segurança da terra, estamos sujeitos a conflitos diários. Continua sendo nossa bandeira principal porque temos hoje 13% do território nacional como terra indígena, mas, desses 13%, 97% estão na Amazônia.

Nossa outra prioridade é a segurança nos territórios já demarcados, porque o discurso de ódio do governo Bolsonaro acaba incitando as invasões. As pessoas praticam as invasões se achando autorizadas, o que acaba gerando insegurança. Antes, ter a sua terra demarcada era uma segurança, hoje os indígenas são mortos dentro de seu próprio território. A outra questão é garantir as condições, as políticas públicas, que possam dar aos indígenas as condições para fazer a gestão desses territórios. A falta dessas condições gera pobreza, insegurança alimentar, ataques e saída dos indígenas para outros lugares. Alguns saem para as cidades sem terem condições.

São muitos os tipos de violência que as pessoas não enxergam como tal. Não demarcar terra é a maior de todas as violências. Nós sentimos diretamente em nosso corpo. Essa aliança para expandir o agronegócio não é apenas uma violência do conflito, mas também reflete no veneno que é colocado nas lavouras, e segue contaminando a água, o ar... O garimpo ilegal, a mineração, tudo isso mata e também contamina a água e os rios. Lá na terra Krenak, eles falam que hoje as crianças não podem mais nadar ou comer o peixe do rio como antes faziam. Não há violência maior do que essa causada pela mineração. No território Munduruku, por exemplo, comprovadamente 70% das pessoas estão contaminadas por mercúrio. Tudo isso são violências que só nós sentimos. Quem está de fora não enxerga essa violência. Precisamos de políticas públicas que atendam essas especificidades. Não adianta uma política ambiental universal. 

É oficialmente garantido pela Constituição Federal brasileira o direito territorial aos povos indígenas. Esse direito é, entretanto, anterior à própria Constituição de 1988, visto que se trata de um direito originário e histórico. No entanto, a luta pela demarcação de territórios indígenas brasileiros enfrenta atualmente grandes desafios, como a proposta de Marco Temporal e as propostas do atual governo de abertura de territórios indígenas para atividades econômicas, projetos de infraestrutura e exploração mineral. Quais impactos esses projetos de lei, caso aprovados pelo Congresso, podem ocasionar para as comunidades indígenas e nas demarcações de suas terras? Quais as maneiras que você vê como as mais efetivas que a sociedade civil tem se mobilizado para impedir a efetivação desse retrocesso?

O Marco Temporal é um dos maiores ataques aos direitos indígenas e à Constituição. Se aprovado, será uma tragédia para nós e para toda a população. O Marco é uma negação à ocupação original dos territórios indígenas. Ao estabelecer o 5 de outubro de 1988 como a data base para se confirmar a presença física indígena nesse território, nega-se tudo o que aconteceu para trás. Essa tese é um dos maiores absurdos porque fere a Constituição Federal. A Constituição diz: são reconhecidos como território indígena aqueles tradicionalmente ocupados pelos indígenas. O Marco e o Projeto de Lei 490 reconhecem como território indígena somente aquele em que for comprovada a presença física desses povos a partir de 1988. Por muitas razões os indígenas não estavam ali nessa época. Esse não é o fator principal para se comprovar, o que comprova é presença ancestral e essa ocupação tradicional.

Estamos muito ansiosos para o julgamento do Marco; será o julgamento do século. Está marcado para recomeçar em 23 de junho de 2022. Esse resultado é o que vai orientar o futuro da demarcação de terra indígena no Brasil. Se o resultado não for favorável, teremos de replanejar nossas estratégias de luta, porque não vamos aceitar a negação de nossos territórios. Há uma articulação no Congresso para que aprovem essa medida e para que o território indígena seja entregue para a exploração. 

A luta pela demarcação dos territórios indígenas tem se configurado como a principal pauta levantada pelas lideranças indígenas e de combate à atual agenda de destruições. Diante do atual cenário, marcado por um modelo de desenvolvimento pautado pela exploração de recursos e, consequentemente, pelo aumento gradativo no desmatamento, a existência de territórios indígenas configura-se como barreiras físicas contra a degradação ambiental. Desse modo, a garantia da demarcação e a proteção das terras indígenas são também responsáveis pela proteção da nossa biodiversidade, combate à crise climática e ao equilíbrio ambiental. Você pode falar um pouco sobre o papel dos territórios indígenas na preservação das nossas florestas, e como o modo de vida dessas comunidades pode ajudar a concebermos uma nova relação futura entre sociedade e natureza?

Em um momento em que estamos discutindo os efeitos das mudanças climáticas e que não podemos permitir que o planeta aumente a temperatura em 1,5º C, todas essas medidas vão na contramão do que deveria ser feito. Um dado pode nos ajudar a aproximar a sociedade não indígena da importância desses territórios: nós somos apenas 5% da população mundial, mas 82% da biodiversidade protegida está em nossos territórios. As pessoas precisam entender isso como o que garante a vida de todos. Se não defendermos os direitos indígenas, os seus modos de vida estarão em risco. Se os modos de vida indígenas estão em risco, a humanidade inteira também está. Será que você vai sobreviver se não tiver mais água? A maioria das nascentes estão em terras indígenas.

Então, a demarcação impacta a vida de todos. A imprensa, nós e os pesquisadores precisamos falar sobre isso para reforçar o sentido dessa luta. A biodiversidade é o que garante a vida e quem está protegendo-a são os povos indígenas; os que mais protegem são os mais atacados.

Gostaríamos de finalizar abordando a temática do amanhã, sobre a qual o nosso livro se trata. Após anos difíceis, marcados por um governo criminoso e anti-indígena, e que tomou ainda outras proporções por conta da pandemia do Covid-19, qual a sua visão para o futuro dos povos indígenas brasileiros, passado esse cenário atual; qual a sua visão para o Brasil de amanhã?

A luta por direitos é importante, pelo meio ambiente, moradia, saúde, educação, comida. Mas estamos entendendo que tudo isso só poderá acontecer a partir do reflorestar das mentes. Lançamos essa iniciativa na Marcha das Mulheres: “Reflorestar mentes”. Trata-se do reflorestar das ideias, do pensamento e, principalmente, dos corações. Precisamos de uma sociedade com mais amor, mais afeto, mais solidariedade entre as pessoas. Precisamos acabar com o individualismo. O sentido da vida é o coletivo.

Se você reflorestar seu coração, disseminar o amor, adquirir essa consciência política e ecológica, entendendo que isso influi no seu futuro, você vai naturalmente reflorestar os territórios. Reflorestar os territórios para garantir a vida no planeta. A chamada é para reflorestar mentes de toda a humanidade para salvar a mãe Terra.

ADMIR MASIC

09/10/2022 - -

Professor Esther e Harold E. Edgerton de Desenvolvimento de Carreira em Engenharia Civil e Ambiental. Fundador e diretor do MIT Refugee Action Hub (MIT ReACT), uma iniciativa lançada em 2017 cuja missão é conceber e proporcionar novas oportunidades de aprendizagem para refugiados e populações deslocadas à força em todo o mundo.

Pensamos em começar a nossa conversa falando sobre os primeiros anos de sua vida e de sua trajetória profissional. Pode falar-nos um pouco sobre como foi esta trajetória, desde a fuga de uma Bósnia e Herzegovina devastada pela guerra a um campo de refugiados na Croácia, até chegar ao cargo de professor no MIT? Quais foram as principais dificuldades que enfrentou? E qual a importância das oportunidades educacionais para si, na condição de refugiado, para poder prosseguir uma educação superior e ter sucesso académico?

É uma trajetória interessante. Penso que a minha jornada é apenas uma das muitas jornadas que as pessoas afetadas pela guerra, ou por outras deslocações forçadas, enfrentam. A minha, em específico, começou em 1992, com o início da guerra na Bósnia. De um dia para o outro, percebemos que precisávamos partir. Você vai para o seu pequeno quarto, pega as coisas mais preciosas – pelo menos na sua mente – e parte. Eu tinha 14 anos, na época. Você parte sem sequer compreender o que está acontecendo.

Deixamos uma casa que se encontrava em ótimas condições. O meu pai trabalhou na Alemanha, e depois construiu esta casa na Bósnia. Em muito pouco tempo, a Iugoslávia tornou-se Bósnia-Herzegovina e Croácia... Eu estava fugindo e tornando-me refugiado no lugar onde nasci, paradoxalmente. Tornei-me um refugiado na Croácia, apesar de ter nascido lá. Mas, porque nasci no hospital que estava do outro lado do rio, que posteriormente se tornou Croácia, e depois ter vivido na Bósnia, tornei-me um estranho, um imigrante da Bósnia para a Croácia.

Para além desses pequenos detalhes, fugimos com a certeza de que voltaríamos atrás. Ficamos em um apartamento com amigos na Croácia durante várias semanas. O meu pai estava no front, lutando na Bósnia, durante meses. Ataques, bombardeios e tudo o mais estava acontecendo. Os sérvios conseguiram de alguma forma atacar até mesmo a cidade na Croácia, onde vivíamos. Todos os dias havia ataques de aviões, por isso passávamos a maior parte do tempo no porão. Mas depois houve um momento interessante, em que os exércitos croata e bósnio conseguiram afastar os sérvios da região onde eu vivia, e assim houve este momento de regresso à casa. Os sérvios não estavam mais ocupando o meu pequeno vilarejo e, por isso, entramos no carro e para lá voltamos. Foi então que percebi que as coisas já não eram as mesmas. Nunca esquecerei o momento em que saímos daquele carro com a minha mãe dizendo: “O que eles fizeram à minha casa?”. As cenas de destruição... O nosso vilarejo foi totalmente, 100% destruído. O mais importante: todas as nossas coisas pessoais, tudo o que fazia parte do meu passado acabou sendo destruído, destroçado, danificado. Nunca esquecerei; corri para o meu quarto através de toda a poeira e destruição para procurar as minhas coisas que sabia ter deixado para trás. Coisas que eu amava muito, e já não estavam mais lá. Esse foi o momento de realização, de que a minha vida havia sido realmente afetada e mudada. Não creio que os meus pais tenham se recuperado disso. Foi muito difícil.

Ajudei um pouco meu pai a reconstruir a casa, mas logo a guerra voltou; outra ofensiva. Eventualmente, ocuparam todo o território do norte da Bósnia e então tivemos de partir de verdade. Meu pai se mudou a trabalho, e nos levou com ele. E foi então que acabamos nestes abrigos. Alguns trabalhadores traziam suas famílias inteiras; havia mais de 100 pessoas neste campo de refugiados. Nós vivemos lá por três anos.

Eu sempre fui muito bom na escola. Na Bósnia, eu tirava somente nota A. Eu estava realmente interessado em seguir com meus estudos na Croácia e continuar a aprender. Mas, lá, os refugiados bósnios não tinham permissão para ir à escola. As leis não foram estabelecidas para aceitá-los em escolas regulares. Apesar de ter nascido na Croácia, não pude ir à escola.

As aulas já haviam começado em setembro, quando minha mãe pegou um ônibus comigo e nós fomos para a cidade. E lá, basicamente, procuramos qualquer escola de ensino médio disponível. As primeiras escolas secundárias que encontramos foram uma escola técnica sobre “Comunicações e Transporte” e “Química”. Perguntamos se eu poderia começar, mas eles disseram “Não”. Minha mãe começou a discutir enquanto eu mostrava meus boletins com todas as notas A. Ela chorou. A psicóloga da escola ouviu falar de nós e nos levou ao seu escritório. Minha mãe explicou que seu filho era muito bom na escola, que éramos da Bósnia e tínhamos acabado de chegar lá. Esta psicóloga então se dirigiu ao diretor da escola, explicando meu caso, e de alguma forma o convenceu a me admitir como estudante convidado. Eles me perguntaram se eu queria ir para “Transporte e Comunicação” ou “Química”. Estas eram as duas opções que eu tinha. Como na Bósnia tínhamos uma refinaria em nossa cidade, eu tinha certeza de que ia voltar e encontrar trabalho, escolhi a química. Foi assim que acabei fazendo química.

Eles me admitiram como convidado, mas registraram todas as minhas notas com algum tipo de caneta que podia ser apagada. Então, quando as leis mudassem, eles poderiam simplesmente validar tudo, mas, enquanto isso, se alguém viesse verificar, eles poderiam apagar os registros; tornando-me inexistente. Foi assim que eu consegui entrar na escola. As lições de casa, para mim, não eram tão exigentes. Eu fazia tudo, claro, com a motivação de uma pessoa que era abençoada por simplesmente estar na escola. Eu me tornei bom em química. Percebi que, de alguma forma, era muito fácil para mim. Eu era talentoso para as ciências.

Em janeiro ou fevereiro, o mesmo diretor da escola disse que havia uma competição na cidade que eu poderia experimentar. Foi tão difícil; eu nunca vi nada parecido. Mas tínhamos quatro horas para resolver as questões. Coloquei tudo o que tinha nisso por horas e fui almoçar. Acontece que, para o meu grupo, não havia segundo ou terceiro lugar, porque o vencedor colocou o nível tão alto que ninguém conseguiu pontos suficientes para conseguir o segundo e o terceiro lugares. E o vencedor foi Admir Masic! Esse foi um momento de mudança de vida. Eu tinha acabado de encontrar meu talento. Então eles me convidaram para as Olimpíadas nacionais, na qual eu me saí muito bem. Depois disso, eles me convidaram para participar da Escola de Verão dos melhores 20 jovens químicos da Croácia; eu era o melhor aluno de todo o país. Foi assim que a história começou. Isto me permitiu realmente me concentrar na química.

Em 1994, após dois anos, meu pai emigrou para a Alemanha, encontrou um emprego e nos enviou vistos para nos juntarmos a ele. Isso foi em abril de 1994. Eu estava terminando o segundo ano do ensino médio e, de repente, tínhamos este sonho do visto. Para um refugiado, ter um visto alemão era como ter um visto para uma vida melhor. Mas eu não queria ir, porque, enquanto eu estava fazendo pesquisa e dando continuidade à minha educação, descobri que a Alemanha não reconhecia as escolas de ensino médio da Croácia. Eu teria de começar de novo. Eu disse: “Eu não quero ir; tenho mais dois, terminarei o ensino médio e depois irei para a Alemanha”. Ao que minha mãe respondeu: “Claro que não, você está louco? Estamos em 94, ainda há guerra, não só na Bósnia, mas também na Croácia”. Eu tinha 16 anos, portanto, não podia ficar sozinho. É claro que a escola estava me apoiando porque eu era o melhor aluno. Então, encontramos um amigo que morava perto do campo de refugiados e tinha um pequeno estúdio no porão de sua casa. Meu pai convenceu minha mãe a me deixar ficar. Ele lhe disse que eles iriam me comprar um bilhete de ônibus para a Alemanha e depois de duas semanas eu já teria tido suficiente disso, e pegaria o ônibus. Mas isto nunca aconteceu. Desde então, eu vivi sozinho.

Preciso admitir que as famílias do bairro me ajudaram, eles me traziam comida. É uma lição de humanidade, uma humanidade que ainda existe. Enquanto isso, conheci organizações humanitárias da Itália que vinham ao meu campo de refugiados, as quais souberam que eu estava vivendo sozinho. Elas me convidaram a ir com elas para oferecer ajuda humanitária para a Croácia. Foi assim que comecei a me conectar com ONGs italianas. Desde quando minha família partiu até agora, tenho estado imerso nesta rede italiana de ajuda humanitária. A cada duas semanas nós viajávamos pela Croácia ajudando refugiados bósnios.

Então, quando você decidiu ir para os EUA?

Quando terminei o ensino médio, a [George] Soros’ Open Society Foundation me deu um prêmio de jovem estudante de maior sucesso da Croácia. Foi muito bom; eu me lembro claramente dessa carta. Recebi também como prêmio 500 dólares. Eu vivia, nessa época, com 100 dólares por mês. Foi um bom momento. Então estas ONGs continuavam me dizendo que eu precisava continuar minha educação. Elas me ajudariam a começar a universidade na Itália, e foi o que eu fiz. Eu me mudei, comecei a fazer química na Universidade de Torino e me formei em 2002. Fiz meu doutorado, também em Torino, e depois me mudei para a Alemanha por uma série de razões. Eu não fui para o lugar onde minha família morava. Em vez disso, fui para Berlim e encontrei um emprego no Instituto Max Planck.

A educação para mim foi uma força motriz. Desde o momento em que descobri esse talento até agora, tudo tem sido apenas para esse talento, colocando trabalho duro no que você sabe que faz bem. Todas as invenções que eu fiz vieram até mim. Eu apenas as visualizava em minha cabeça e as escrevia. Havia momentos em que eu tinha muitas dúvidas porque eu não tinha nada para comer. Se você não tem o que comer, é realmente difícil apostar na educação. Há este desafio. Embora eu tivesse tantas ofertas de doutorado, eu não queria fazer, porque não conseguia viver com 800 euros por mês de salário. Então encontrei esse emprego e fiz meu doutorado no meu tempo livre. É sobre isso que muitos dos meus projetos vão eventualmente falar: levar em conta esta experiência e esta força como uma escolha de apostar na educação. É realmente algo que tem de se levar em conta.

Em 2017, você fundou o programa ReACT – o MIT Refugee Action Hub – como um esforço para fornecer um programa de educação global voltado para as necessidades das pessoas refugiadas em todo o mundo. De que forma a fundação do ReACT foi baseada em suas próprias experiências, em relação aos desafios enfrentados pelos refugiados e outras pessoas deslocadas, especialmente quando se trata de acesso a recursos de aprendizagem e oportunidades de desenvolvimento profissional?

Em 2015 eu vim para o MIT; eu tinha esta oportunidade incrível para ir a uma das melhores universidades do mundo e fazer o que sempre sonhei: ser professor. É de alguma forma a culminação e a realização de um sonho. Isso aconteceu, e eu me senti muito feliz com isso. Enquanto isso, havia tanta coisa acontecendo com os refugiados. Os números estavam crescendo. Lembro apenas como foi difícil ter acesso a uma educação de qualidade, e quantos obstáculos tive de passar ou como era frustrante não ter oportunidades.

Sabemos que essas pessoas que vemos na TV não terão a oportunidade porque não podem viajar e não têm dinheiro. Eu acabei de perceber o quanto fomos privilegiados, como eu tive sorte e quantos eventos tiveram de acontecer para que eu pudesse estar onde estava. Comecei a aprender sobre o aprendizado digital e o aprendizado aberto. Eu estava dando minhas aulas e comecei a refletir sobre minha experiência. Olhando para os momentos-chave do meu caminho, e quais foram os componentes que fizeram a diferença. Por exemplo: poder acessar conteúdo de qualidade ou ter dinheiro para pagar por comida. Ao mesmo tempo, ser capaz de realmente me empenhar, de sentar-me na sala de aula. Havia tantas pessoas e camadas de dentro do MIT que queriam ajudar. Eles me disseram para apresentar minha ideia, do tipo de programa que poderia tornar viável o acesso dos refugiados à educação. Quais seriam os parâmetros? Um programa que permitisse superar aqueles obstáculos que sempre foram os mesmos ao longo de décadas.

Tinha de ser um trabalho bem remunerado. Na verdade, tinha de haver algo que não fosse apenas um emprego, porque eventualmente você precisava estar disposto a transformar sua comunidade, e ser capaz de ganhar dinheiro enquanto estudava. Estes eram os pilares do ReACT.

A computação, nesse sentido, é o campo ideal, porque a codificação pode ser feita remotamente, por meio de trabalhos remotos. O segundo componente, o intraempresarial, é necessário porque você precisa mudar as mentalidades. Nós lidamos com indivíduos deprimidos, com transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Eu, por exemplo, ainda lido com meu TEPT, mesmo depois de ter me tornado professor.

Quem pode acessar esse conteúdo?

Isto também se conecta com a situação da Covid. Temos aulas on-line que podem ser acessadas de qualquer lugar do mundo. Nosso processo de seleção é muito difícil. Estabelecemos que admitimos indivíduos extremamente talentosos. Temos cerca de milhares de candidatos e admitimos talvez 100. Este ano, estamos com 150 alunos. A seleção funciona assim como a do MIT, nossa taxa de admissão é de apenas 7%; 75% de nossas vagas são reservadas para refugiados e 25% para habitantes locais nos países em que operamos. Nosso programa opera em 10 centros; estamos todos os dias em expansão. Começamos na Geórgia, onde fizemos os campos de treinamento ao vivo. Isso foi muito caro e exigente. Nesse sentido, a Covid nos ajudou, pois podemos funcionar a distância; precisávamos ir on-line.

O terceiro componente são os estágios pagos ou projetos que são feitos localmente onde vivem os estudantes. Atualmente, o modelo ReACT está disponível para todos, em qualquer lugar do mundo, desde que tenham conexão à Internet e um computador, e vivam em um país onde nossa rede de funcionamento está presente. Criamos redes de empresas e programas que permitem que nossos estudantes façam este trabalho prático e ganhem algum dinheiro para viver, se precisarem. Muitos deles trabalham fazendo nossos programas simultaneamente.

Considerando que a oportunidade de acesso à educação mudou sua vida, queremos expandir nossa conversa para o poder da educação dentro de comunidades vulneráveis. Há uma correlação direta comprovada entre o acesso ao conhecimento e a possibilidade de pessoas em condições vulneráveis reconstruírem suas vidas longe de tais condições. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), atualmente 5% dos refugiados têm acesso ao ensino superior. Este número aumentou 4% em comparação com os dados de 2019, que eram de apenas 1%. Entretanto, este índice ainda está muito abaixo da média global entre os não refugiados, 39%. O que impede o aumento deste número? Quais são os gargalos? Você acha que a maior parte da educação ofertada ainda está seguindo algum tipo de solução ultrapassada?

Absolutamente. Ainda estamos vivendo na Idade Média quando se trata de educação superior. Porque você precisa ir às aulas, estar lá presente, sentar-se nesta cadeira desconfortável, ouvir, e talvez até cochilar. Estou bastante confiante de que isto mudará, mudará na direção de existir a possibilidade tanto do on-line quanto do presencial, funcionando de mãos dadas com as experiências; um modelo on-line com, talvez, aprendizagem experimental no campus ou em algum lugar.

Além disso, estes números estão definitivamente ligados à discriminação. Muitos países não permitem o acesso dos refugiados à escola. Foi o que me aconteceu. Em certas circunstâncias, você também não pode se dar a esse luxo. Imagine que você não tem uma casa, que tem duas sacolas de roupa e nada mais. Você começaria a pensar em investir nos próximos quatro anos de sua vida para estudar? Não, você vai encontrar um emprego e fazer o que quer que seja para cuidar de sua família, para cuidar de si mesmo.

As coisas estão mudando por causa da educação on-line. Um bom exemplo agora é a Universidade das Pessoas [University of the People], que é baseada em um modelo de aprendizagem entre pares, em que você aprende com seus colegas. É um grande modelo, no sentido de que permite que você cresça rapidamente. Por exemplo, eles têm agora cerca de 16 mil ou 17 mil refugiados inscritos em seus programas, que são os números que gostaríamos de ver no nosso. Em comparação com o ReACT, eles estão crescendo muito mais rapidamente porque estão abertos a todos. Embora já estejamos trabalhando em acordos com as universidades para aumentar a admissão ao ReACT, penso que, à medida que avançamos nesta nova era do ensino superior, a acessibilidade aumentará, assim como o número de refugiados e pessoas deslocadas envolvidas em programas de ensino superior.

Queríamos abordar a seguir o tema do racismo e da xenofobia em relação aos refugiados. Além dos enormes problemas já enfrentados por eles, tais como a perda de suas casas, a separação da família e a dura perturbação em suas vidas, os refugiados frequentemente têm de lidar com atitudes preconceituosas e estereotipadas na sociedade anfitriã, sendo muitas vezes posicionados como inimigos ou como uma ameaça. Como essa mentalidade distorcida que, até certo ponto, desumaniza os refugiados, pode ser eliminada, ou pelo menos mitigada? Em que medida o acesso à educação oferece melhor integração social aos imigrantes?

Vamos analisar o meu caso e depois podemos tentar expandir a partir dele, para generalizar. Em 1992, eu fui a um pequeno mercado próximo ao meu campo de refugiados. O proprietário deste supermercado me fez as perguntas: “Qual é o seu nome? De onde você é?”. Eu respondi: “Da Bósnia”. Ele continuou: “Quantos anos você tem? Você terminou o ensino fundamental? E você era bom na escola?”. Eu disse que era bom e tirei somente notas A. Então, ele zombou, mencionando que, ali, todas aquelas notas seriam equivalentes a notas C. Depois, quando acabei nos jornais devido às minhas vitórias, eu lhe trouxe muitos recortes de jornais, só para que ele se lembrasse dessas notas C.

O que eu quero dizer aqui é que, se eu agora voltar para a Croácia, as pessoas comentam “Oh, meu Deus. Você se lembra? Você costumava morar aqui e agora está no MIT”. O que aprendi nessa pequena jornada pessoal é que existe um valor universal na educação. Eu realmente acredito que, quanto mais você for instruído – e talvez também rico – menos discriminado você será. Mas, mais importante ainda, existe esta moeda universal de ser qualificado, de ser uma pessoa valiosa por meio de seu aprendizado e de seu caminho educacional.

É por isso que colocamos na mesma mesa 25 estudantes locais e 75 refugiados, `todos quais pelos mesmos desafios. Colocá-los à mesma mesa, com as mesmas lutas e desafios, gera respeito. Isso vai além de apenas aprender e educar. Deixa emergir a beleza de suas mentes. Se conseguirmos dar a oportunidade, se muitos progredirem de sua situação atual, acho que minha missão já está completa.

Gostaria de expandir e falar sobre a pandemia. De que formas particulares a pandemia da Covid-19 afetou os refugiados? Quais foram as principais consequências e desafios experimentados por estes, em uma época em que o mundo inteiro fechou suas portas? Eles foram deixados de lado? Houve mais assistência para eles? Como foi a resposta do ReACT à crise?

Para nós, como eu lhe disse, a possibilidade de operar on-line, devido à quarentena de Covid-19, foi uma vantagem, porque tudo se tornou remoto. Ela nos permitiu ter a tecnologia pronta para todos, inclusive os refugiados. Para qualquer coisa que você precisasse durante a pandemia, teria de ter um computador e acesso à Internet. Essa prontidão da tecnologia fez a diferença para nós. Agora, falando sobre as dificuldades que as pessoas enfrentavam, eles estavam presos na burocracia. Todos os escritórios estavam fechados, todos os vistos pararam. Se você fosse um estranho em um país e quisesse ir para outro, você simplesmente não poderia ir. Como você consegue um visto se os escritórios estão fechados e as entrevistas interrompidas? É claro, eles sofreram porque estavam às margens de tudo.


Por causa da situação, você recebeu um número maior ou menor de estudantes aplicando para o programa?

Não sei, eu acho que foi a mesma coisa. O número de refugiados está aumentando globalmente. Agora temos centenas de refugiados.

Existe uma maneira de transferir esse conhecimento para outras universidades, de modo que o programa também possa funcionar em outro lugar?

O modelo ReACT acabou levando ao estabelecimento de uma estratégia educacional completamente nova chamada ECA – Educação Contínua Ágil. É um conceito de aprendizagem aberta do MIT que inventamos desenvolvendo o ReACT.

Tendo trabalhado com refugiados durante anos e tendo visto os efeitos de uma pandemia, como a atual, para o mundo em geral e para a população de refugiados especificamente, gostaríamos de fechar esta entrevista olhando para o futuro. Que tipo de amanhã devemos almejar para melhor assistir as comunidades de refugiados? O que devemos mudar na direção que estamos seguindo?

Eu realmente acredito que a educação é a chave para uma vida melhor. Experimentei isso em minha própria pele. Está provado, pelo menos em meu pequeno mundo. Estou convencido disso. Para o futuro, eu realmente quero ter certeza de que essa oportunidade está lá. Quantos estudantes vão aproveitar essa oportunidade? Não é por minha conta, é por conta deles. Mas eu quero ter certeza de que fazer o possível para que eles tenham a oportunidade.

Como vamos fazer isso? Eu acredito no aprendizado aberto e na aprendizagem digital; em levar água às crianças sedentas em todo o mundo. Acho que estamos cada vez melhores em garantir esse copo d’água. Meio cheio ou meio vazio, não nos importamos, desde que seja água. Não nos importamos porque só precisamos de água.

Além disso, eu tenho um sonho de que existirá um ambiente virtual acessível a todos. Por esse espaço virtual – pode ser uma universidade virtual, pode ser o ReACT ou qualquer outro programa – eles passarão por uma jornada educacional de alta qualidade e sairão daquele lugar com habilidades que todas as empresas deste mundo desejariam. Que cada estudante tenha a certeza de que depois dessa experiência, caminho e jornada, algo estará garantido. Essa é a esperança, e eu trabalharei para criá-la e não decepcionar nenhum desses estudantes quando eles entrarem em nosso programa.

ANA CRISTINA GONZÁLEZ VÉLEZ

28/07/2022 - -

Pesquisadora, advogada e especialista na área de saúde sexual e reprodutiva, direito à saúde e igualdade de gênero. Professora de Direito Sanitário da Faculdade de Medicina da Universidad de Los Andes e ex-diretora nacional de saúde pública da Colômbia. É a fundadora do The Right to Decide, um grupo médico na Colômbia, e cofundadora do La Mesa por la Vida y la Salud de las Mujeres. Ela também é membro da coordenação política da Articulación Feminista Marcosur, uma coalizão feminista latino-americana.

Ana Cristina, gostaríamos de iniciar a nossa conversa abordando a sua trajetória profissional. Você possui formação em medicina e, atualmente, leciona direito da saúde na Faculdade de Medicina da Universidad de Los Andes. Além disso, é fundadora do grupo The Right to Decide e cofundadora do La Mesa por la Vida y la Salud de las Mujeres. O que a motivou, ao longo de sua carreira como médica, a especializar-se no campo da saúde sexual e reprodutiva e dedicar-se à luta pelo direito à saúde e à igualdade de gênero?

Eu acho que foi a confluência de minha vida como feminista e de meu estudo de medicina. Eu comecei a estudar muito jovem e experimentei por muitas vezes algo que hoje eu sei que se chama discriminação, mas, naquela época, eu não tinha ideia de que aquilo tudo tinha um nome. Dois ou três anos depois, eu comecei o ativismo em alguns grupos em Medelín. Foi aí que eu compreendi que o que eu experimentava tinha nome. Por exemplo, comentários sobre eu não poder estudar ortopedia, por ser algo destinado aos homens. Ou quando estava estudando ginecologia e obstetrícia e não nos ensinavam sobre aborto ou métodos contraceptivos. Foi o encontro entre o ativismo em Medelín e o estudo que me levaram a um campo essencialmente vinculado à liberdade das mulheres, que são os direitos sexuais e reprodutivos.

Meu primeiro trabalho como médica foi na PROFAMILIA, que naquela época era a maior organização privada do mundo em provisão de serviços de saúde sexual e reprodutiva. Eu tive a possibilidade de escolher entre um trabalho no hospital mais importante da cidade ou um trabalho em saúde reprodutiva. Essa talvez tenha sido a escolha da minha vida.

Eu comecei meu trabalho profissional no campo da saúde sexual na década das conferências nacionais da ONU. Então, ao mesmo tempo que comecei a prestar serviço nos bairros mais pobres, também comecei a fazer advocacy internacional na agenda de gênero e saúde reprodutiva, como parte dessas conferências. Misturei minha vida profissional com ativismo, o que intensificou meu interesse pela desigualdade de gênero e o campo da saúde reprodutiva. Acho que encontrei na minha profissão uma maneira de fazer um ativismo mais técnico. É político, mas tem uma base forte na expertise. Eu sou reconhecida por conhecer tecnicamente desses temas e ao mesmo tempo ser uma ativista do debate público.

Você foi uma das líderes do movimento Causa Justa, cuja mobilização resultou em uma mudança radical nas leis colombianas relativas ao aborto. Em fevereiro desse ano, a Corte Constitucional da Colômbia aprovou a descriminalização do aborto até a 24ª semana de gestação. Dessa maneira, ficou determinado que as mulheres colombianas podem optar pela interrupção de sua gravidez até o sexto mês da gravidez. A decisão conforma uma vitória histórica para o movimento para a garantia de direitos fundamentais das mulheres colombianas e também latino-americanas. Como começou a mobilização legal do movimento? E quais foram as principais estratégias articuladas pelo movimento Causa Justa para alcançar este objetivo?

É importante situar como nasce o movimento. Em 1998, eu e um grupo de mulheres criamos a La Mesa por la Vida y la Salud de las Mujeres. Quando começamos, o aborto era totalmente proibido na Colômbia, e decidimos juntar mulheres de campos diferentes (advogadas, médicas, ecologistas, filósofas) para começar a pensar argumentos que abrissem a conversa sobre o aborto. Até então, ninguém falava sobre isso. Por ser um delito, era muito difícil falar do problema de saúde pública.

A Mesa foi um coletivo que trabalhou por todos esses anos até que, em 2006, o aborto foi descriminalizado pela primeira vez na Colômbia em três circunstâncias: para salvar a vida e a saúde das mulheres; nos casos de violação e estupro; e nos casos de malformação fetal incompatível com a vida extrauterina. Então, decidimos fazer todos os esforços necessários para implementar essa decisão, porque sabíamos que muitos países já tinham exceções à criminalização do aborto – inclusive o Brasil – mas isso não significava maior acesso ao aborto para as mulheres. Duas ações foram tomadas; a primeira foi o acompanhamento das mulheres que enfrentavam barreiras de acesso ao aborto. Esse acompanhamento serviu para que conseguíssemos mostrar os tipos de barreiras enfrentadas. Ao mesmo tempo, construímos uma interpretação dessas causas para que os operadores judiciais e sanitários tivessem elementos para julgar amplamente os casos. Conseguimos, ao longo de 15 anos, treinar quase 5 mil médicos no país para que, quando uma mulher solicitasse um aborto, eles tivessem as ferramentas de interpretação da situação, de maneira coerente com o marco dos direitos humanos.

Uma década depois, percebemos que esse modelo estava esgotado. Apenas 10% das mulheres tinham acesso ao aborto legal, os demais eram clandestinos. A criminalização contra as mulheres cresceu, chegando a 400 casos por ano de mulheres criminalizadas e 26 condenadas. O número de condenações por aborto era o dobro do número de condenações por violência contra mulheres. O delito do aborto era mais perseguido do que o de violência contra elas. Então, começamos a construir uma crítica desse modelo para mostrar que ele aprofundava as desigualdades entre mulheres e que era necessário mudar o paradigma. Criamos a iniciativa Causa Justa para lutar pela eliminação do crime do aborto do Código Penal. Até esse momento, falava-se em aborto como um crime, e queríamos fazer um movimento de todas as organizações feministas e de direitos humanos para construir uma estratégia para abrir a conversa sobre o aborto nos nossos próprios termos. Éramos contra o crime porque ele era ineficaz, injusto, contraproducente e discriminatório. A iniciativa da Mesa virou um movimento, hoje temos mais de 100 redes nacionais que participam organicamente em mais de 20 cidades do país e o apoio de líderes políticos. A Causa Justa busca abrir a conversa democrática e pública, para isso escrevemos um livro com 90 argumentos da ordem da saúde pública, do direito criminal, da bioética, da desigualdade, do estado laico e da liberdade de consciência. Porque a única maneira de abrir uma conversa é dispor de muitos argumentos que apelam para diferentes audiências.

Nós priorizamos cinco pontos estratégicos. Primeiro, a comunicação política e a mobilização social: conseguimos estar na mídia por mais de 500 dias com notícias positivas sobre o aborto. Além da mídia tradicional, nós abrimos as nossas próprias redes sociais. O segundo ponto foi o trabalho para que esse fosse um debate nacional, abarcando diferentes cidades do país. Em terceiro, a mobilização nas ruas. Também fizemos trabalhos pedagógicos com várias audiências. E, por fim, a estratégia legal, que contemplava algumas opções.

A Causa Justa foi apresentada publicamente em 2020 para abrir a conversa e, somente quando houvesse a oportunidade, entraríamos com a estratégia legal. Isso aconteceu em outubro desse mesmo ano a partir da tentativa de reverter todas as conquistas até então quanto ao aborto. Um juiz nos falou da necessidade de avançar. Fizemos a demanda na Corte Constitucional e ela só foi ouvida depois de 523 dias. Durante esse tempo, mantivemos nossas estratégias. Os dados que temos são resultado de um estudo que fizemos. A divulgação desses dados marcou uma ruptura, porque muitas pessoas não tinham ideia de que o aborto realmente era uma ameaça e constituía uma perseguição ativa do estado contra as mulheres. Nossa estratégia se baseou em um trabalho coletivo. No final, todo mundo sabia que Causa Justa era um movimento identificável – não era abstrato –, baseado em argumentos sólidos e na mobilização nas mídias, nas redes e nas ruas.

Com a decisão tomada em fevereiro, a Colômbia tornou-se o sexto país latino-americano a descriminalizar o aborto. A decisão tornou-se a terceira vitória do movimento nos últimos dois anos, sucedendo Argentina e México, que também mudaram suas legislações relacionadas à garantia de aborto. No entanto, apesar dos avanços expressivos nos últimos anos, fruto da árdua luta travada por ativistas de direitos reprodutivos, alguns países da América Latina ainda possuem as mais duras leis antiaborto em todo o mundo, em que se proíbe a prática de aborto em qualquer cenário. Como você vê o cenário latino-americano diante da luta pelo direito à saúde e à igualdade de gênero? E quais são os próximos passos e desafios para o movimento?

A Colômbia acabou se tornando uma vanguarda na América Latina e no Caribe nessa questão. Mas nós não conseguimos que o crime de aborto fosse retirado do Código Penal. Nosso modelo legal ficou como uma “modelo de prazos"”, em que, dependendo do tempo de gestação, o aborto não é crime. O aborto continuar configurado no Código Penal tem um impacto simbólico muito grande. A América Latina e o Caribe configuram o aborto como crime, em todos os países.

Para além disso, temos três grandes divisões nas diferenças de legislação. Alguns países legalizaram o aborto, a depender do tempo de gestação (Argentina, partes do México, Uruguai, Porto Rico, Cuba e Colômbia). Dentre esses países, alguns têm modelos mistos, com prazos amplos. Por exemplo, na Colômbia, depois de 24 semanas, só é permitido o aborto se estiver enquadrado em uma das três exceções. Esse modelo é arbitrário, porque o prazo é definido com base na divisão da gestação por trimestres. Essa divisão tem sentido para a gestação, porque marca riscos referentes à gestação, não tem nada a ver com o aborto. Há países que só permitem o aborto até a oitava semana, quando quase nenhuma mulher sequer tem ciência da gravidez ainda. Ao mesmo tempo, esse modelo garante alguma autonomia para as mulheres, porque até esse prazo elas não precisam apresentar nenhuma justificativa.

O segundo bloco, que engloba o maior número de países da nossa região, é o que demanda justificativa ao aborto. No Paraguai, por exemplo, apenas é permitido o aborto para salvar a vida da mulher. Por fim, temos o grupo dos países em que é totalmente proibido – a maioria localizado na América Central – ou com alto grau de perseguição criminal. No caso do Brasil, a justiça persegue a mulher, os médicos, o medicamento.

Essa região tem todas essas diferenças legais, e talvez seja a menos avançada nesses termos, mas temos um movimento feminista ativo, organizado e com intercâmbio de estratégias, ideias e argumentos que mantêm vivo o debate. Os EUA tiveram uma grande decisão nos anos 1970 e seguiram muitos anos em silêncio depois disso. Eu acho muito importante essa ausência de silêncio na nossa região, mas o desafio é avançar em direção à igualdade em relação ao aborto. Precisamos nos mover na direção de uma crítica sólida do uso do direito penal para regular o serviço de saúde. A única maneira de fechar esse movimento pendular de avanços e retrocessos é eliminar o delito e regular fora do âmbito criminal, apenas no âmbito sanitário. Outro grande desafio é a implementação. As barreiras de acesso para mulheres, mesmo em contextos liberais, são imensas, pois ainda estão ligadas ao estigma do crime. Eu vou estudar medicina para ser um criminoso?

Eu acho que a grande batalha feminista deste século é a liberdade reprodutiva. No século passado, foi o direito ao voto e à educação. A liberdade reprodutiva está no centro da agenda de uma batalha cultural feroz.

A América Latina é uma região tradicionalmente conservadora, devido à grande influência exercida pelas Igrejas Católica e Evangélica. Apesar de as democracias latino-americanas garantirem a existência de um estado laico, a igreja possui um papel de grande destaque, com bancadas políticas religiosas que influenciam diretamente na tomada de decisões políticas. Qual o peso do conservadorismo e da moralidade religiosa para o avanço dos direitos das mulheres nos países latino-americanos?

Essa não é uma área da minha especialidade, mas eu penso que há uma distância grande entre a estrutura institucional da igreja e as pessoas comuns. Nos níveis pessoal e individual, tomamos decisões – como interromper uma gestação – sem nos importarmos se somos cristãs ou católicas. Fizemos uma pesquisa na Colômbia e ficou clara essa dissociação da religião das questões mais íntimas. A institucionalidade da Igreja é um dos personagens que fazem parte da batalha cultural que eu falei.

Sinto também que eles foram perdendo os argumentos. Tivemos 523 dias de conversa pública sobre a nossa luta, e a Igreja teve uma participação muito baixa na conversa, a qual esteve focada em apenas dois argumentos: a vida inocente do feto e os efeitos negativos do aborto na saúde mental das mulheres. Eles não conseguem se envolver na conversa democrática pautada em argumentos, então, focam na manipulação emocional. O avanço na qualidade das imagens dos exames contribui muito para este tipo de argumento, porque vemos como o feto já se parece com uma pessoa. A Igreja usa, como estratégia, ausentar-se das conversas e tentar derrubar os argumentos pró-direitos. Na Colômbia, uma das razões na demora para a decisão final da Corte foi o envio de 20 requerimentos de anulação da nossa demanda. Agora que ganhamos essa decisão, estão tentando anulá-la, organizando um referendo baseado em mentiras e manipulação das emoções. A campanha deles é no púlpito.

Expandindo sobre essa discrepância entre a norma e a prática, a criminalização do aborto, além de não evitar que os atos sejam realizados, submete mulheres, sobretudo aquelas de baixa renda, à realização dos procedimentos clandestinos e insalubres, devido à ausência de acesso a meios seguros de realização do aborto. Desse modo, é possível dizer que a repressão dessa conduta, além de se demonstrar ineficiente na ordem prática, também se configura contrária aos objetivos e esforços de melhoria da saúde pública, uma vez que valida um meio de ataque à saúde e ao bem-estar social das mulheres, assim como gera ao redor disso uma forma de preconceito social?

Depois da conquista de uma mudança legal é muito importante ter clareza que o nosso esforço está apenas começando. É preciso criar condições para a lei ou a sentença serem de fato implementadas, com disponibilidade em serviços de saúde, assim como treinamento e campanhas. É nesse momento que nos deparamos com a resistência cultural em relação ao aborto. 

Seria injusto não reconhecer que, em nossa região – a América Latina –, temos avançado também nesse âmbito. Há 15 anos era muito mais difícil identificar prestadores disponíveis para fazer o serviço do aborto. Hoje, encontramos em quase todos os países, apesar do estigma. Vemos o crescimento de grupos de médicos e profissionais que lutam pelo direito de decidir. 

Também avançamos nas regulações sanitárias. Depois da lei, também é preciso algum tipo de instrumento para garantir a ação dos profissionais de saúde, para que as ferramentas sanitárias falem a linguagem deles. A OMS tem sido muito clara em determinar como os serviços devem ser prestados.

Outro desafio é no nível da educação. Temos pouca inclusão dos assuntos sobre gênero, direitos sexuais e reprodutivos nas escolas de medicina. É preciso mudar a cabeça dos médicos depois de formados para que se adéquem às mudanças legais.

Temos construído uma linha muito importante para avançar na implementação: as mulheres que já decidiram fazer o aborto não vão mudar de ideia, mesmo que ameaçadas. Então, do ponto de vista de saúde pública é melhor que essas mulheres cheguem a tempo no serviço de saúde para evitar complicações, morbidades que afetem sua fertilidade no futuro ou até a morte.

O mais importante para mim é que as conquistas legais são uma grande vitória. Agora, a grande disputa está na implementação. Por isso é essencial regular sem delito, sem direito criminal, porque assim conseguimos levar a conversa no nível mais técnico e sanitário. 

Finalmente, essa pergunta tem tudo a ver com o que chamamos de despenalização social. É o desafio de mudar a cabeça e o coração das pessoas, para criar legitimidade às decisões das mulheres, respeitando-as como sujeitos morais plenos, com capacidade de decidir. Como explicar que temos um padre em Pernambuco preocupado com uma mulher fazendo aborto no Rio Grande do Sul? É uma desconfiança na capacidade moral das mulheres.

 Seria injusto não reconhecer que, em nossa região – a América Latina –, temos avançado também nesse âmbito. Há 15 anos era muito mais difícil identificar prestadores disponíveis para fazer o serviço do aborto. Hoje, encontramos em quase todos os países, apesar do estigma. Vemos o crescimento de grupos de médicos e profissionais que lutam pelo direito de decidir.

Também avançamos nas regulações sanitárias. Depois da lei, também é preciso algum tipo de instrumento para garantir a ação dos profissionais de saúde, para que as ferramentas sanitárias falem a linguagem deles. A OMS tem sido muito clara em determinar como os serviços devem ser prestados.

Outro desafio é no nível da educação. Temos pouca inclusão dos assuntos sobre gênero, direitos sexuais e reprodutivos nas escolas de medicina. É preciso mudar a cabeça dos médicos depois de formados para que se adéquem às mudanças legais.

Temos construído uma linha muito importante para avançar na implementação: as mulheres que já decidiram fazer o aborto não vão mudar de ideia, mesmo que ameaçadas. Então, do ponto de vista de saúde pública é melhor que essas mulheres cheguem a tempo no serviço de saúde para evitar complicações, morbidades que afetem sua fertilidade no futuro ou até a morte.

O mais importante para mim é que as conquistas legais são uma grande vitória. Agora, a grande disputa está na implementação. Por isso é essencial regular sem delito, sem direito criminal, porque assim conseguimos levar a conversa no nível mais técnico e sanitário.

Finalmente, essa pergunta tem tudo a ver com o que chamamos de despenalização social. É o desafio de mudar a cabeça e o coração das pessoas, para criar legitimidade às decisões das mulheres, respeitando-as como sujeitos morais plenos, com capacidade de decidir. Como explicar que temos um padre em Pernambuco preocupado com uma mulher fazendo aborto no Rio Grande do Sul? É uma desconfiança na capacidade moral das mulheres.

Em junho deste ano, após quase meio século de garantia constitucional para a prática de aborto nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana revogou a decisão histórica Roe versus Wade, que reconhecia o direito e legalizava o ato em todo o país. Essa deliberação já está exercendo grande fortalecimento de vozes antiaborto e conservadoras, em geral. Levando em conta a enorme influência exercida pelos Estados Unidos, em face do seu poderio político, militar e financeiro, é possível que a decisão tomada pela Suprema Corte americana possa ter um efeito contagiante e reverso sobre as políticas de países latino-americanos? Como essa influência pode significar um passo atrás na luta latino-americana, principalmente em países como o Brasil, em que ainda não tiveram avanços em direção à descriminalização do aborto?

Eu acabei de publicar um artigo exatamente sobre essa questão. [GONZÁLEZ VÉLEZ, Ana Cristina. La derogación de la decisión ‘Roe vs. Wade’: hay que mirar al Sur Âmbito Jurídico, [s. l.], 19 jul. 2022. Disponível em: https://www.ambitojuridico.com/noticias/analisis/la-derogacion-de-la-decision-roe-vs-wade-hay-que-mirar-al-sur. Acesso em: 15 ago. 2022.]  Não tenho dúvida de que os governos ou as frações mais conservadoras dos países vão tentar utilizar essa decisão para justificar qualquer ataque aos nossos avanços, inclusive para criar a ideia equivocada de que o que aconteceu nos EUA também vai acontecer aqui.

Como eu disse, ainda estamos esperando que a Corte Constitucional da Colômbia resolva as solicitações de anulação da decisão de fevereiro. Isso faz parte de qualquer processo, qualquer um pode solicitar uma anulação. No dia da revogação da Roe versus Wade, o governo da Colômbia, em um ato manipulador, disse estar pedindo a revogação da decisão de fevereiro. Todos os jornais nos ligaram e tivemos de esclarecer que essa notícia é velha e que não foi isso que o governo pediu. As notícias faziam parecer que era algo decorrente da decisão americana.

Sinceramente, eu acho que, do ponto de vista jurídico, a decisão na Colômbia é distinta da Roe versus Wade. A decisão americana foi baseada na proteção à privacidade, enquanto a da Colômbia está pautada no direito à saúde, na igualdade, na liberdade de consciência, e tem uma crítica ao uso do direito penal. Ela tem fundamentos diferentes, e está arraigada nos princípios constitucionais, por isso não vai cair.

Além disso, eu acho que o movimento e a conversa em relação ao aborto são muito diferentes nos EUA e na América Latina. Nós temos um movimento que não se calou, é ativo e organizado. Nos EUA, eles estão começando agora a se organizar, mas não há grupos dedicados a isso. Eu acho que é o momento de o norte olhar para o sul. Não como uma arrogância nossa, mas pela solidariedade. Eles devem conhecer o que temos feito em termos de estratégia, argumentos e movimentos para manter a conversa viva.

Os EUA levaram 50 anos para derrubar essa decisão. Foi uma longa estratégia dos grupos antidireitos na Corte Suprema. Precisamos ter cuidado com o debate concreto, mas também com todas as macroestruturas em que ele se apoia. 

Como você colocou, a luta pela garantia ao acesso ao aborto vai muito além da simples descriminalização do ato. Ela faz parte de uma batalha pelos direitos femininos à saúde, à privacidade e à liberdade, representando assim o respeito às mulheres como indivíduos livres e protagonistas das decisões sobre si mesmas. É possível entender o corpo como uma fronteira política, que reflete na esfera privada disputas ideológicas travadas no domínio público? Esse campo de batalha se configura também como o remanescente de uma tentativa patriarcal de controle sobre o corpo feminino?

Eu acho que o corpo é o último lugar de disputa do patriarcado, ou pelo menos o mais simbólico. Não se pode compreender a liberdade das mulheres sem incluir a possibilidade de elas decidirem sobre o próprio corpo. A liberdade tem a ver com prefigurar um projeto de vida. Como uma mulher pode prefigurar seu projeto de vida sem ser livre em relação a seu corpo? A ideia de liberdade que disputamos hoje é uma ideia de liberdade dos homens.

No âmbito público, as decisões que limitam nossa liberdade foram tomadas por homens. Os códigos penais têm mais de um século, foram feitos quando estávamos fora do acordo social. É um acordo sexual para dividir o mundo do público para os homens e o mundo privado para as mulheres. Tudo dentro do âmbito privado é menos valorizado. O mundo privado limita nossas possibilidades de sermos mais autônomas economicamente. Por exemplo, as mulheres que dedicam horas ao trabalho doméstico não remunerado têm de procurar trabalhos que se adaptem a essas obrigações. Isso as leva para o trabalho informal e com menor remuneração.

Hoje, as mulheres trabalham, têm alguma participação na esfera política e conseguem que assuntos privados façam parte da conversa democrática pública. Estamos na disputa e explicando como nosso corpo está preso por acordos de privilégios entre homens. Tentamos explicar algo tão simples e óbvio, e tão difícil, ao mesmo tempo. Em várias entrevistas, os jornalistas me pedem para explicar mais uma vez. Todas sabemos que a grande disputa hoje está no controle da nossa reprodução, porque ela é importante para manter a vida e para manter as mulheres em um lugar de controle.

Para finalizar as nossas conversas, costumamos abordar com nossos convidados a temática do amanhã e nosso futuro em comum. Desse modo, apesar de vivenciarmos vitórias e enormes avanços, como a liderada por você na descriminalização do aborto na Colômbia, a nossa sociedade também experiencia a ascensão recente de um fundamentalismo político e de uma reação neoconservadora, cenários que ameaçam o avanço da luta por direitos humanos fundamentais, igualdade de gênero, raça, crença etc. Vivenciamos ainda situações persistentes de marginalização das mulheres, por meio de abusos sociais e violência sexual – obstáculos que, apesar de séculos de lutas e batalha feminina, se demonstram, infelizmente, ainda muito presentes e nos privam às vezes de enxergar um mundo melhor e mais justo. Quais são os caminhos e pontos de inflexão necessários para a construção de um futuro em que mulheres desfrutem de uma vida plena, saudável e livre de qualquer repressão ou estigma social? O que cada um de nós deve fazer para garantir a construção desse futuro?

Quando paramos para perceber, já estamos, como eu, há 25 anos lutando por uma causa. Eu não programei e não planejei isso; eu fui lutando.

Algo que sempre me foi útil foi ter a capacidade de falar com honestidade, clareza e convicção. Porque muitas pessoas nunca tiveram a oportunidade de ouvir argumentos claros, concisos e honestos. Essa é uma maneira de apelar ao coração das pessoas. Uma importante maioria das pessoas concordaria que as mulheres são sujeitos morais plenos. Essa frase é muito simples e muito importante. Todos confiam nas mulheres como mães e cuidadores no geral, mas não confiam em nós para decidir se queremos continuar uma gestação ou não, inclusive pensando no bem-estar daquela futura criança que não queremos, não conseguimos ou não podemos trazer para o mundo. É importante questionar as pessoas sobre o efeito negativo gerado ao ignorarem a nossa plena capacidade moral .

Estou convencida de que o cenário mais pacífico para todos é aquele sem crime de aborto. Acredito que as mulheres mais jovens vão continuar essa luta, que é a batalha cultural deste século.

SHEILA JASANOFF

07/07/2022 - -

Professora de Estudos de Ciência e Tecnologia na Harvard Kennedy School. Pioneira em seu campo, é autora de mais de 130 artigos e capítulos, e autora ou editora de mais de 15 livros. Seu trabalho explora o papel da ciência e da tecnologia no direito, na política e na política das democracias modernas. Ela tem diplomas AB, JD e PhD de Harvard, e doutorado honorário das Universidades de Twente e Liège.

Gostaríamos de iniciar a entrevista com uma conversa a respeito de sua trajetória profissional. Você fundou o Programa de Estudos de Ciência e Tecnologia na Harvard Kennedy School, que é um programa que você dirige atualmente, mas também fundou programas similares em outros lugares, como o Departamento de STS [Estudos de Ciência e Tecnologia] na Cornell – sem mencionar que seu trabalho é considerado um dos pioneiros nesse campo de estudo, e você ganhou todos os prêmios possíveis. Curiosamente, no entanto, sua formação inclui graduação em Matemática, Linguística e Direito. O que a levou a fazer convergir esses diferentes interesses para o que conhecemos hoje como STS? E, para aqueles que não estão familiarizados com o termo, você poderia explicar um pouco quais são a abordagem e a visão dos Estudos de Ciência e Tecnologia?

Acho que a palavra trajetória é bastante enganosa porque sugere que há uma direção. Mas, se eu tivesse de descrever minha trajetória intelectual, eu diria que ela foi motivada mais pelas exigências pessoais das relações: onde eu estava, quem eu era. Sou indiana por nascimento e um produto de uma geração de pais que vivenciaram a Independência Indiana. Todos eles estavam comprometidos com uma visão particular. Meu pai era economista de desenvolvimento, isso significava que ele estava comprometido com soluções tecnológicas como parte da questão da modernização, e com o fato de que a melhor educação para as crianças é técnica.

Acho que a visão do meu pai era a de que eu faria algo mais aplicado. Acho que sua visão particular era a química. Eu caí na matemática porque era um curso mais rápido. Eu tinha a chamada “posição avançada” quando vim para Harvard. Isso significava que eu poderia conseguir um ano de crédito e terminar a universidade em três. E, como viemos de uma situação financeira modesta, ele não queria que eu ficasse aquele ano extra, então eu tinha de terminar a faculdade em três anos e a matemática era uma das áreas que me permitiam fazer isso.

Depois fui enviada para fazer um trabalho de pós-graduação em química na Alemanha, o que foi um desastre total por vários motivos. Não foi a coisa certa para mim em muitos aspectos. Conheci meu marido naquele ano, e ambos éramos graduados em Harvard. Mas eu nunca tinha nenhum conhecimento de que a linguística sequer existia como um campo. Eu sabia sobre o estudo da literatura, mas não que havia essa forma mais formal de estudar a língua, aprendi isso com ele, e me pareceu muito mais apropriado para meus talentos.

Quando eu terminei, já havia uma crise no mercado de trabalho. Além disso, não acabei trabalhando com gramática generativa e Chomsky, que era a moda. Acabei fazendo Linguística Histórica, e não havia essencialmente nenhuma demanda por história da língua bengali, que era minha língua materna. Foi o casamento de duas carreiras que me impulsionou a pensar no Direito como alternativa. Uma vez que entrei para a advocacia, também ficou claro que eu nunca iria fazer direito empresarial. Meu primeiro emprego depois da faculdade de Direito foi em um escritório de advocacia ambiental, um pequeno corpo especializado que havia acabado de começar.

Depois nos mudamos para o norte de Nova York, para a Universidade de Cornell, e eu caí nesse programa interdisciplinar sobre ciência, tecnologia e sociedade, porque era o único lugar que tinha algum reconhecimento pelas coisas que eu estava fazendo. Fiquei lá por exatamente 20 anos. Levei 10 anos para descobrir quais eram as perguntas que eu iria fazer. Acho que o principal dos paradigmas não é que eles sejam construídos socialmente ou que sofram revoluções, mas que sejam espaços muito seguros. Os paradigmas lhe dão instruções e o que você deve fazer; eles lhe dizem o próximo passo, a trajetória importante, a pessoa a quem você deve ir se quiser estar no topo de seu campo. Eu não tinha nada disso, eu estava tomando um diploma pragmático de Direito e tentando descobrir como construir uma carreira de pesquisa em torno disso. Levei cerca de 10 anos para começar a sentir que eu realmente podia fazer perguntas que faziam sentido para mim, e que elas se mantinham de pé em algum sentido.

Depois tive a grande oportunidade de cristalizar isso, porque me tornei diretora desse programa, que havia se desencaminhado. A STS na Cornell, em 1988, quando me tornei diretora, tinha muito pouco a seu favor. E acho que não gosto de coisas dilapidadas, então comecei a pensar em como reconstruí-lo.

Em 1991, esse campo de estudos se tornou um departamento e, com isso, trouxe todos os tipos de responsabilidades. Desde que decidi voltar a ser estudante, para mim a questão era: vou dar às pessoas um diploma neste campo, do qual ninguém ouviu falar, e para onde quer que elas vão isso será um investimento para elas. No final, elas terão um pedaço de papel que diz “Doutorado em STS”. Eu realmente tive de começar a pensar sobre o que era aquela coisa de uma maneira muito mais coerente. Não é ter o caminho traçado com antecedência, é fazer o mapa e viajar com ele ao mesmo tempo. Nesse aspecto, tem sido uma viagem constante de descoberta e incrivelmente emocionante. Entendi o que significa ser pioneiro, de certa forma. É muito experimental, você pode sempre tentar coisas novas.

Sua segunda pergunta foi “pode explicar o que é STS?”, e a primeira coisa que digo às pessoas é: a sigla em inglês, pode ser Estudos de Ciência e Tecnologia ou pode ser Ciência, Tecnologia e Sociedade. Ambos são abreviados como STS. Estudos de Ciência e Tecnologia era a versão mais europeia e mais orientada filosoficamente, mais internista do campo, que dizia: como pensaríamos sobre ciência, se, em vez de apenas ouvirmos os cientistas, realmente agíssemos com o que eles estão fazendo enquanto abordam essas questões. Como é que os cientistas decidem que algo é verdade? Isso é um deslocamento; é de repente transformar um campo que tinha sido completamente autônomo e permitir-se fazer sua própria história em um campo temático, um campo sobre o qual você pode estudar e fazer perguntas.

Essa tradição estava mais fundamentada na Europa, comprometida com esta ideia de que você entende de ciência e tecnologia, examinando como os cientistas e os próprios tecnólogos estão tentando fazer o que estão fazendo. A versão americana sempre foi mais politicamente consciente. O que são a ciência e a tecnologia que levam à criação de riscos? É possível evitá-los? Quais são as implicações, do ponto de vista ético, de se fazer ciência e tecnologia? Como a sociedade muda como resultado da ciência e da tecnologia? Essas eram perguntas de STS mais ao modo da escola americana. Tive o benefício de estar exposta a ambas, em parte porque vim de fora e, portanto, não tinha noções preconcebidas.

Meu ponto de vista era que não se pode compreender de forma totalmente crítica o poder da ciência e da tecnologia no mundo sem entender como elas funcionam como instituições sociais e políticas em si. Mas isso é a metade da questão ou a metade do problema. Não vale a pena fazer isso até olhar totalmente para o grupo e dizer: que diferença faz que essas coisas existam na sociedade? Se você diz às pessoas que eu faço estudos religiosos, e elas meio que entendem por que é importante estudar religião e por que deveria haver pessoas estudando, mas não entendem se você diz Estudos de Ciência e Tecnologia. No entanto, se você diz, religião, ciência e tecnologia, qual é a diferença? Eles não seriam capazes de dar uma resposta muito boa para isso. Isso então se torna parte do problema. Como essas duas instituições poderosas e centrais se retiraram da reflexão e da sociedade, para que as pessoas pensem que é uma coisinha estranha a se fazer, parar e perguntar-lhes? Eu quero chacoalhar as pessoas e dizer: como você pode não querer estudar essas coisas que são tão centrais em suas vidas? É como falar: eu quero estudar o poder, eu quero estudar a sociedade.

Várias vezes, você demonstrou como a ciência e a tecnologia estão intrinsecamente embutidas em quase todas as formas de organização humana e como essa articulação tem sido central na redefinição de nossa relação com o mundo natural e manufaturado e nossos sistemas de práticas sociais. Esse processo é um processo que você e outros rotularam de “coprodução”, que funciona como uma ferramenta crítica para o rastreamento do poder em reinos onde a teoria social não conseguiu fazer isso. Você pode expandir o conceito de coprodução?

Primeiro, tenho de tirar um sentido de coprodução de que não gosto. Muitos termos linguísticos têm uma vida cotidiana e uma vida técnica, e elas nem sempre coincidem. Meu senso de coprodução é um senso muito mais metafísico. É um sentido que diz que a forma como entendemos o mundo está profundamente relacionada e é inseparável de nossos compromissos normativos dentro desse mundo.

Pegue qualquer exemplo bobo: pegue o incesto. Você não deve se casar com sua irmã, certo? Mas aí isso depende de se é sua irmã. Supondo que você tenha dois pais divorciados, e cada um traga um filho de um casamento diferente, e não haja consanguinidade. Vocês foram criados juntos como irmãos desde cedo, e aí decidem se casar um com o outro; isso é incesto? Isso não é incesto? Nesse sentido, é o famoso tropeço de Bill Clinton quando ele disse que tudo depende de qual é o significado de “é”. Acho que esse foi um momento profundamente metafísico, porque ele estava questionando os fundamentos do “é” em um contexto social naquele momento. Acho que ele tinha razão, ainda que reconhecidamente não tenha sido um momento muito nobre na história americana.

O tipo de coprodução que tenho em mente, e que os estudiosos nesta linha de trabalho também têm em mente, tem a ver com os estados do mundo que evocamos nas comunidades. Comunidades de crença, é assim que penso sobre elas, mas também comunidades de ação e comunidades de compromisso. Há uma diferença entre como alguém vai olhar para as temperaturas recordes de ontem na Inglaterra, se essa pessoa pensa que o planeta é um só. O aquecimento global é uma responsabilidade coletiva; devemos pensar nisso como o clima falando, e não apenas como instrumentos de medição em Londres. Todas essas coisas voltam atrás e dão feedback sobre o seguinte: nós nos sentimos como parte da mesma comunidade de pessoas que esses londrinos? Ou achamos que é problema deles?

Você se lembra de que, em 1983, Ben Anderson escreveu um livro extremamente influente chamado Comunidades Imaginadas. Mas sua ideia de comunidades imaginadas era apenas uma ideia política: o poder imposto a partir do topo faz com que as pessoas vejam o mundo de uma certa maneira. A Guerra Fria foi a quintessência, o melhor exemplo de comunidade imaginada. Para mim, como uma estudiosa da STS, a mudança climática é um tipo típico de formação de comunidades imaginárias, em que tem tanto a ver com a natureza e com o que é nosso componente humano nessa natureza. Ela altera a imaginação do que se sente ou onde pertence enquanto cidadão.

É possível inventar novos conceitos, como o de cidadania climática em uma estrutura de coprodução, e as pessoas entenderiam do que você está falando. Acho que um termo teoricamente produtivo como esse realmente permite que você faça outras construções conceituais que começam a desfazer as fronteiras que foram impostas pelo paradigma antigo. Acho que o paradigma está mudando em parte por um ponto de vista coproducionista diferente, que está surgindo. A percepção de que nós cobramos as categorias antigas até um ponto as torna não mais válidas; e faz com que você reterritorialize seu espaço imaginativo de uma maneira diferente.

Em múltiplos ramos dos estudos sociais, é perceptível um retorno ou um aprofundamento da atenção às formas de materialismo. Para a ciência e a tecnologia, isso vem com um processo de fundamentação em que abordagens epistemológicas puras são substituídas por outras onde os constituintes materiais desses campos são trazidos à tona. Em outra ocasião, você mencionou que começamos a levar a sério o fato de que “as coisas existem no espaço; a tecnologia atua por meio de objetos; os objetos têm agência; a ciência é criada em determinados lugares; e a sociedade não existe em abstrato”. Quais são as implicações desse material para a forma como evoluímos como sociedade?

Esta é uma pergunta realmente importante e interessante, porque, toda vez que as pessoas dizem que há uma curva assim, há uma tendência a fetichizar essa curva e ir nessa direção. Eu certamente seria negligente se não dissesse logo no início que a pessoa que mais popularizou essa virada material foi Bruno Latour. Porque a frase “os objetos têm agência” é realmente uma das ideias dele. Acho que é uma maneira moralmente enganosa de agir se a gente parar por aí. Obviamente, acredito que a forma como projetamos os materiais, as dimensões e os elementos do mundo tem um enorme impacto e constrange as pessoas. Na STS, há anos as pessoas têm notado essas coisas. Aliás, muito antes de Bruno Latour, havia o filósofo, cientista político, Langdon Winner, que escreveu um artigo muito famoso dizendo que os artefatos têm política. Essa foi a linha dele, mostrando assim que as preferências políticas são incorporadas à fabricação de artefatos. A ideia latouriana é que não são apenas os seres humanos que têm uma força no mundo que permite que as coisas aconteçam; são também as coisas materiais. Há um exemplo famoso: você pode obedecer a um policial que está em um cruzamento com uma placa dizendo “Siga” ou “Pare”. Mas, igualmente, se você construir uma lombada na estrada, essa lombada é, em seus termos, um policial adormecido que também diz isso. Ela tem agência, mesmo sendo imóvel.

Agora, eu acho que isso é uma distração. Porque, se você se concentra na agência, tende a minimizar a estrutura. E, portanto, você não faz a pergunta “Por que esses materiais? Por que construímos o mundo desta maneira e não de outras?”. Se você vive nos Estados Unidos, esta pergunta está sempre presente. Por que um tiroteio em massa aconteceu ontem em Indiana, e todos estão falando do homem que matou o atirador como um Bom Samaritano? Eu não sou cristã, mas, na Bíblia, o Bom Samaritano era alguém que prestava auxílio a uma vítima e fazia com que ela se sentisse melhor, não alguém que sacava uma arma e atirava em alguém para evitar um futuro ato de violência. Se o bom cidadão estivesse armado com uma arma e pronto para tomar uma ação vigilante, onde quer que um problema se apresentasse, a gente cairia no caos mais rápido do que poderia dizer “surpresa”. Ao dar agência a objetos, sim, o objeto pode matar. O objeto tem uma vida, está transformando nossas sociedades. Mas isso não é o mais importante. É o compromisso com o individualismo. É o sentido de que a sociedade não tem a obrigação de suprimir certos desejos das pessoas a fim de elevar certos outros desejos. É a ausência da esfera pública. É a falta de motivação para que qualquer solução coletiva seja formada. Porque “eu posso resolver o problema com minha arma, meu contrato de seguro, meu emprego, meu carro”. A constante volta às soluções baseadas em “eu” em vez das soluções baseadas em “nós” que são tão fundamentais para a sociedade americana. Tudo isso não aparece se você disser que o objeto tem agência. Não diz “por que essa agência?”, “por que esse tipo de objeto?”. Ele apenas toma o objeto como se fosse garantido sem lhe dar uma história, ou história moral, o que seria um relato coproducionista.

Gostaria de mudar de assunto, para a pandemia e sua relação com a informação. Sabemos que esta crise sanitária também veio com outra forma de crise marcada pela desinformação em torno do tratamento e da prevenção da doença. Isso reforçou a importância do acesso à informação e a urgência de uma formação mais elaborada e robusta de uma cultura política entre a população. Você também se referiu ao nosso momento atual como um momento em que o conhecimento está no centro de nossa sociedade. Quais são as formas que você vê para aumentar a consciência pública e democratizar o envolvimento público com a ciência, evitando a atual polarização sobre o significado e a confiabilidade da informação?

Um dos axiomas dos estudos científicos é: “a verdade não existe diante da sociedade”. É um acordo da sociedade dizer que algo é verdade, que produz a verdade. A verdade é o ponto final de um processo, não o início deste. Seria possível dizer exatamente a mesma coisa sobre informação. O que é informação? Eu acho que o tipo de virada pós-moderna de meados do século XX foi, em parte, fazer esta pergunta: como a perspectiva afeta o que vemos, o que se toma como certo, até o que se considera notícia?

Tudo isso sugere um substrato de aceitação comum de certas coisas. A informação tem de ser significativa, interpretável em um contexto, utilizável de uma maneira que se possa agir sobre ela. Caso contrário, não é informação, é simplesmente um sinal.

Mas, então, o que é informação? É toda a matriz interpretativa mais o sinal. Nesse sentido, acho que se pode dizer que a informação é apenas o ponto final de um julgamento coletivo que todos nós concordamos que é importante, significativo, relevante.

Tomemos outro caso de extrema importância ética: o direito a ser esquecido, a decisão do Google na Espanha. O direito de ser esquecido diz, em essência, que “posso, por meio do meu software, coletar pontos de dados sobre você, mas, se esses pontos de dados deixarem de ter conteúdo informativo no contexto dos costumes da sociedade (se for falso, irrelevante, trivial, muito velho, ultrapassado, pedaços de julgamentos da sociedade), então posso solicitar ao Google que tire de lá e não pertença ao seu catálogo de informações, simplesmente não deveria estar lá”. A decisão do Google Espanha é metafisicamente muito significativa porque diz que é o julgamento social sobre o que é informação válida que deve controlar se esse modo de capitalismo de vigilância é ou não uma modalidade legítima.

Para mim, os estudos científicos precisam entrar e ser capazes de escavar. É preciso dizer que o que realmente está acontecendo neste momento é uma demonstração de que nós, como sociedade, estamos comprometidos com essa noção de que uma norma social é mais importante do que um dado tecnicamente coletado. Se os dois estão em conflito, é a norma social que governa, e não a existência do ponto de dados. Esse é um julgamento normativo bastante importante. É possível imaginar transformá-la em uma lei constitucional. Esses são os tipos de formas pelas quais eu acho que o STS pode contribuir para o discurso público, primeiro usando estruturas analíticas e ferramentas para explicar, em um caminho mais claro, o que está acontecendo em situações muito complexas. Você queria ficar andando sonâmbulo neste regime onde uma tecnologia de plataforma imperial apenas decide que ela vai perpetuar você?

Todas as sociedades têm sua ideia sobre o que é tabu, o que não deveria ser, mas estas tecnologias de plataforma invadiram nossas almas e tomaram nossa alma sem nos dizer que isso é o que está acontecendo. Eu vejo aqui o projeto crítico de STS, o projeto democratizador de STS. Não se trata apenas de construir referendos, e assim por diante, mas de apontar analiticamente: onde o fato está acontecendo, onde a apropriação está acontecendo, onde a formação de capital está acontecendo, onde os poderes não analisados entram em cena... Então, que as pessoas assumam ou não, conforme o caso, e decidam deliberar, mas alguém precisa mostrar que isso não é apenas uma coisa neutra, é uma mudança de estado.

Mas talvez haja alguns motivos comuns nos quais conversas como esta possam acontecer.

Mas o solo pode não existir. Estou fazendo um projeto que chamamos de The Global Observatory, em relação à edição do genoma humano. A premissa desse projeto é ser um espaço para discutir essas questões profundas sobre o que é a vida e para que serve a vida. Essas são as duas perguntas que coloquei em um de meus livros, mas que não há lugar para debater; costumavam ser domínio da religião. Não construímos uma alternativa secular. Nós dissemos: os cientistas definem o que são ambos, e por isso lhes é permitido definir para que serve a vida. “Eu encontrei uma cura, uma terapia para esta condição, portanto, posso declarar que a condição é ruim e retirá-la.” E as pessoas concordarão porque foi isso que definimos. Mas é um caminho perigoso porque, como mostra a recente decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre o aborto, é possível voltar atrás. E, a menos que você tenha teorizado esse território de forma mais profunda, pode ter pessoas dizendo que outras coisas estão erradas, e então os mecanismos institucionais não existem para consertá-lo.


Com relação à Covid, em 2021, você liderou, junto com Stephen Hilgartner da Universidade de Cornell, o estudo denominado “Resposta Comparativa à Covid: Crise, Conhecimento, Políticas (CompCoRe)”, no qual foi feita uma análise comparativa entre as respostas dadas por diferentes nações à pandemia da Covid-19, levando em conta a perspectiva dos estudos de ciência e tecnologia. Por meio de seu estudo, foi feita uma tentativa de responder à questão de por que algumas nações, mesmo enfrentando o mesmo inimigo comum, tiveram resultados tão diferentes em termos de taxa de contaminação e fatalidade; isto é, enquanto algumas tiveram sucesso em conter o vírus, outras tiveram grandes dificuldades em combater a doença. Além de um grau de preparação ou recursos financeiros, onde está a discrepância, especialmente quando olhamos para ela por uma perspectiva STS: é uma questão de política, de comunicação científica ou mesmo de como as reivindicações de conhecimento são construídas e contestadas?

Decidimos, para nosso projeto, que iriamos chamar a atenção para o pacto social, como nós o chamamos, ou contrato social que rege essas sociedades. Dissemos que, onde o pacto social foi amplamente aceito por toda a sociedade, houve uma resposta relativamente eficaz. Uma coisa que isso nos permite fazer é evitar a distinção entre autoritário e democrático, porque acontece que não tem a ver com ser autoritário ou democrático, mas com se a sociedade aceita a natureza do autoritarismo ou a natureza da democracia, e qual é, de qualquer forma, a natureza dessa democracia.

Em Cingapura, por exemplo, houve muito pouca discussão, porque esta sociedade concorda que um modo autoritário de governança produzirá melhores resultados. E para a China, até a variante Ômicron aparecer, isso também era verdade. Os chineses estavam extremamente orgulhosos e concordavam que suas políticas muito rigorosas de Covid-zero haviam derrubado as infecções em Wuhan e apenas eles, no mundo inteiro e com mais de 1 bilhão de pessoas – haviam mostrado o pico caindo e sem voltar a subir. A esse respeito, se você julgar o comportamento democrático pela existência de um grande convencimento público, os chineses estavam aceitando mais a abordagem de seu governo do que os americanos.

Nos Estados Unidos, é bem sabido que o pacto social tem se desgastado ao ponto de não haver um conjunto abrangente de princípios com os quais toda a sociedade concorde. E, portanto, houve uma bifurcação também em relação à ciência. Dependendo de onde e como se sente em termos da política do presente, cada lado está afirmando ter sua própria ciência e respeitar isso, e não os outros. Não é algo que tenhamos visto em nenhum outro país, vimos alguma resistência, mas não uma divisão 50/50, nem uma recusa completa por parte de qualquer um dos lados de aceitar em qualquer grau as posições do lado oposto. Acho que isso fala da natureza muito frágil do compromisso americano com o governo e a governança. Países que tendem a ir melhor em geral são os que são autoritários (China, Cingapura) ou democráticos e socialistas (Alemanha, Holanda, Suécia). Esses países têm uma espécie de solidariedade entre os cidadãos, uma espécie de expectativa compartilhada do que o Estado deve fazer e quase nenhuma controvérsia técnica prolongada – como temos nos Estados Unidos sobre a eficácia das vacinas (que tem sido bastante aceita em quase todos os outros lugares).

Sim. Está mais relacionado com como os governos são construídos e recebidos pela população.

É a expectativa do que são os benefícios sociais, que o governo deveria estar proporcionando, e se o governo está fazendo um bom trabalho ao oferecer esses benefícios. Neste momento da história americana, uma das partes está basicamente pronta para dissolver o governo na medida do possível, e simplesmente não há soluções coletivas. Mas, se você não tem soluções coletivas, então se torna a sobrevivência do mais forte ou do mais rico, ou o que quer que seja. E é uma espécie de lei da selva que está quase definindo isso.

Gostaria de ter uma conversa sobre a noção de objetividade. Agora sabemos que, uma vez que o vírus seja controlado e não seja mais uma ameaça à saúde humana ou um fardo para os sistemas públicos, os problemas e desafios que surgiram e foram exacerbados por este momento de crise persistirão e potencialmente crescerão. Dessa forma, a pandemia da Covid não só atingiu nosso corpo, mas também trouxe à tona falhas em alguns alicerces que foram vendidos insistentemente como objetivos: como o modelo de economia liberal, os fluxos globais de troca de mercadorias, as representações atuais da democracia e as formas de prestação de assistência social. E, com essa objetividade, costumava vir um discurso construído sobre uma forma de racionalização tendenciosa que elogiava a medição, a classificação, a autodisciplina e a não intervenção em vez de aspectos relativos a interpretação, escolha e tomada de decisões. Podemos até dizer que faz parte da formação de um aparato moralizante apontado para a validação da produção do conhecimento e do discurso político; ou o estabelecimento de condições para legitimar e alocar o poder, reivindicando a verdade argumentativa. Como devemos revisitar a ideia de objetividade quando está claro que os sistemas que foram elogiados como estáveis, corretos ou inevitáveis estão realmente se desmoronando?

Penso que há muito a ser dito para um entendimento de que sistemas excessivamente rígidos tornam-se frágeis e angustiados. Eu acho que a objetividade foi um desses tipos de ideias muito frágeis, porque ela pressupõe colocar algo fora da sociedade. Voltando ao STS, o ponto básico é que construímos um conjunto de indicadores de como é o mundo e nos curvamos diante deles, como ídolos. Não quisemos reconhecer que criamos esses ídolos. Até certo ponto, portanto, externalizamos nossas imagens científicas a partir do que nós mesmos colocamos neles. A objetividade, como a verdade, como a informação, é em última análise uma decisão cultural que vamos considerar como o modo como o mundo realmente vê as coisas, e como elas são.

Na história da arte, há muitos exemplos de especialistas que discordam completamente de se algo realmente foi feito por santos ou não. Gosto de falar sobre uma das exposições mais interessantes que vi no Metropolitan Museum em Nova York. É um dos grandes museus do mundo, e eles tinham uma exposição inteira de Rembrandts que o museu havia comprado em épocas diferentes. Para alguns deles, você e eu, como observadores leigos de Rembrandt, teríamos dito: como alguém pode ter pensado que isso era um Rembrandt? Mas, na época em que foram comprados, as pessoas pensavam que eram Rembrandt de verdade. Ao lado de cada um deles, havia uma declaração de um historiador de arte e uma declaração de um analista químico, dizendo se era real ou não. Na maioria das vezes, eles tendiam a concordar. Mas chamava a atenção para o fato de que existem duas maneiras radicalmente diferentes de ler aquilo culturalmente. Você pode tomar o olhar interpretativo ou pode decidir deixar que um instrumento químico lhe diga, mas ambos são instrumentos sociais, que estão lhe dizendo certas coisas.

A ideia de objetividade é importante para as pessoas. Há muitos lugares onde não se quer agir com base na intuição de uma única pessoa, e ajuda saber que é possível confiar em algo na medida em que se quer. Mas tomar isso como um substituto para a verdade real e defendê-la de alguma forma é onde ela começa a dar errado. Para ter uma objetividade forte em uma sociedade, acho que é preciso ter ideias fortes de em quem você confia para produzir aquela leitura que você vai fazer para ser objetivo. Eu posso ter uma instituição de saúde pública com séculos de existência e confiar nela. Portanto, tomo como objetivo o que ela está fazendo. Mas a descoberta, por exemplo, de que nesta instituição havia secretamente um monte de nepotismo, ou algo assim, iria alterar isso, imediatamente. Diz apenas que eu aceito que meu governo tem sido muito bom no que diz respeito aos funcionários e não vai mentir. O fato de você aceitar isso é o que se vê como objetividade, não que eles produzam o único relato do mundo com o qual todos concordariam. Meu próprio trabalho comparativo mostra que a forma processual pela qual as pessoas atingem a objetividade e a tomada de decisões sociais varia muito entre os contextos, e especialmente entre os países.

Nos Estados Unidos, há uma ficção de que existem dois adversários na sala de audiências, e, se eles se enfrentam, a objetividade e a verdade surgirão porque cada lado tirará o preconceito do outro lado. Mas quem observa as melhores práticas diz que esse é o lugar errado para começar. O lugar para começar é como eles trouxeram esses especialistas para a sala em primeiro lugar e olhar para a forma como eles constroem todo o campo de jogo, e não apenas o confronto frente a frente no momento.

Acho que o que o STS tem de frutífero, o que o torna uma constante e perturbadora – mas para mim sempre emocionante – jornada de autoentendimento e crítica, é pegar essas palavras em negrito de nossa civilização moderna (palavras como “verdade” e “imparcialidade” e “objetividade” e a própria “razão”) e não mostrar indulgência, em algumas comunidades particulares da razão, com a necessidade de facticidade e objetividade. Então, o autoconhecimento faz isso. Você compreende que, dada uma escolha, isso é o que as pessoas prefeririam fazer. É o que elas considerariam sacrossanto. E, então, elas chamarão isso de ciência ou de projeto. Mas você se dá conta dessa tendência e vê outros e como eles estão fazendo isso. Às vezes, outras pessoas podem estar fazendo melhor. Outras vezes, pode parecer que os custos são altos demais para fazer daquela maneira. Podemos pensar que o projeto crítico é para melhorar o autoconhecimento, para que o que possivelmente precisa ser corrigido em você mesmo se torne mais aparente, para que você comece a ver o caráter conjunto da sociedade, as coisas em que caímos, sem tentar achar linhas de falha que não são visíveis a olho nu. Acho que esse é o tipo de percepção que esse campo oferece e que faz dele algo novo a cada dia.

Gostaríamos de concluir olhando para o futuro. Historicamente, tempos de crise também foram circunstâncias forçadas de revisitar ideias cristalizadas, ordens existentes e formas consolidadas de agir, comportar-se e pensar. Com esta pandemia, que já é um dos acontecimentos mais perturbadores deste século, há ou talvez tenha havido uma abertura de uma “janela” de inflexão histórica, uma oportunidade para repensar e reformular novos caminhos para o futuro. Você acha que este momento será marcado como um ponto de transição, ou será que perdemos a oportunidade? O que você acha que pode sair da era Covid?

No início da pandemia, eu estava esperançosa de que enfrentar um inimigo comum aumentaria nosso senso de uniformidade no mundo. Mas, à medida que a coisa avançava, eu me tornei consideravelmente menos esperançosa e gostaria que provassem que estou errada em meus pontos de vista pessimistas.

Nossa reação à pandemia não foi fazer a pergunta: que formas de socialidade podemos empregar para ficar seguros e tomar precauções, mas, mesmo assim, não desistir da ideia do social? Acho que isso teria levado a práticas diferentes. Em vez disso, era um problema social – porque há a transmissão do vírus –, e assim, especialmente nos Estados Unidos, afastamos todas as dimensões da socialidade. Livramo-nos das academias, dos esportes de todos os tipos, dos cinemas, de todos os teatros e salas de concertos. A primeira decepção para mim foi que eu estava incrivelmente ansiosa por uma apresentação ao vivo no Symphony Hall. Eu não fui, e essas coisas não podem ser trazidas de volta. Para outras pessoas, os custos eram muito mais altos, como quando as escolas estavam fechadas. Acho que as sociedades que foram mais flexíveis em manter as escolas abertas se saíram melhor. Fomos muito rígidos ao fechar escolas. Tiramos todos os apoios sociais e deixamos as pessoas trabalhando por conta própria. Foi uma espécie de experiência global por dois anos sobre o que acontece quando se dissolvem os laços sociais. Penso que levará muito tempo para superar a sensação de alienação, as consequências para a saúde mental das pessoas durante o isolamento.

Veja os grandes macroindicadores: as pessoas não querem voltar ao trabalho. As pessoas não querem viver em cidades. A pandemia dissolveu certos modos de ser coletivo amplamente aceitos. Não sei o que vai acontecer, acho que o aumento da violência armada no país, a compra de armas, as taxas de suicídio... Há alguns indicadores disto, mas ainda não sei o quanto eles são significativos. Os índices de solidão foram exacerbados pela pandemia, e acho que alguma versão disso aconteceu em todo o mundo. E isto não é uma coisa só, está vindo em cima da questão do clima. O problema climático hoje também está sendo visto como um movimento em direção ao isolamento, de certa forma. É desfazer a rede do mundo que, nos últimos três ou 400 anos, temos estado ocupados em construir. É uma espécie de dissolução. É como ver uma coisa sendo gradualmente corroída por um ácido, e eu não sei o que vai acontecer.

BETO VERÍSSIMO

12/04/2022 - -

Possui formação na área de engenharia agronômica com pós-graduação em ecologia pela Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA). Tem estado à frente de múltiplas iniciativas de combate ao desmatamento e à exploração ilegal de madeira na Amazônia. Cofundador do Imazon, Diretor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, Acadêmico afiliado da Princeton University, Coordenador do Projeto Amazônia 2030.

Gostaríamos de começar abordando o seu trabalho como cofundador e pesquisador associado do Imazon, e também como coordenador do projeto Amazônia 2030. São anos de estudo e luta pela construção de um melhor futuro na Amazônia. Para iniciarmos nossa conversa, você pode falar um pouco sobre as iniciativas que você tem tocado na Amazônia? Ao longo desse período de envolvimento com a região, quais avanços e ganhos podemos ressaltar em relação ao desenvolvimento sustentável e à valorização da Floresta Amazônica?

Eu trabalho na Amazônia há quase 35 anos. O fio condutor sempre foi a ideia de que a informação de qualidade tem um peso decisivo no destino da região. Todas as coisas que eu faço têm a ver com geração de novos conhecimentos, com informação que faça sentido no contexto sociocultural e institucional da Amazônia, além do político-econômico, que façam sentido no contexto específico da Amazônia, que é um território com muitas questões não resolvidas de direito de propriedade, da própria floresta, que institucionalmente não conseguimos enquadrar no mundo. As soluções para a floresta são sempre desafiadoras. Grande parte do que eu faço é dedicado à geração de novos conhecimentos.

Esse é o lado do pensar, depois tem o lado do fazer. Na Amazônia, você precisa fazer para aprender com as condições objetivas da região. Para mim, fazer é um ato de constante aprendizagem. Você tem uma ideia de como combater desmatamentos e você precisa aterrizar essa ideia. Como construir parcerias locais? Quem são esses atores locais? Tem sempre essas duas coisas: estou pensando, mas estou também fazendo. A minha missão é segurar a Amazônia, a floresta. Meu compromisso é com a floresta. No final do dia, eu estou preocupado com os seres da floresta, as entidades da natureza e as pessoas que estão cuidando dela.

Eu acho que a gente tem uma compreensão muito limitada da importância da floresta, de sua complexidade. Isso não é apenas uma frase de efeito, é uma constatação da ciência. A gente não tem sequer capacidade computacional para entender como funciona a floresta tropical. Ela é o ápice de toda a vida desse planeta. Nunca surgiu nada mais complexo, nenhum ecossistema nesse meio bilhão de anos da vida biológica pluricelular. Ela está aí há 50 milhões de anos e foi diminuindo por oscilações do planeta. No momento em que ela está mais reduzida, por outros fatores, a humanidade, com suas pressões, a põe em risco. Para mim, é uma questão mais existencial. Eu vou fazer tudo, entre o pensar e o fazer, coletivamente, e usar todo o meu tempo. A nossa geração não é capaz de entender, e de proteger a floresta como ela merece. Trata-se mais de passar o bastão, da melhor forma possível, para a geração futura. Vou contribuir para que a gente entenda um pouco mais, conserve o máximo possível e construa a melhor narrativa cultural. As instituições das quais eu participo são instrumentos disso; elas não são o fim por si mesmas, estão aqui para servir a esse propósito. Essa é uma tarefa coletiva, tem muita gente fazendo, com maneiras diferentes de contar essa história. Parece que eu estou fazendo coisas demais, mas elas todas estão conectadas. Às vezes eu penso que estou envolvido com muitas coisas, mas elas têm um senso de ordem. Eu estou preocupado com a questão da existência da floresta, com esse dever moral e cívico.

Todo dia aparece mais uma razão utilitária para manter a floresta. Todo dia a gente aprende que a floresta é mais importante e mais necessária para o clima, para a biodiversidade e para os ciclos hidrológicos. Agora, tem uma outra dimensão que é o porquê, a gente não salva as coisas apenas por razões utilitárias; tem de ter uma razão maior. Aí entra o papel de outras dimensões, que eu não estou navegando no meu trabalho, mas que são importantes: a cultural, a espiritualidade... Se ficar só na dimensão da ciência e da economia, a dimensão da razão não dá conta do problema. Não vamos conseguir resolver só com as dimensões da razão.

A importância exercida pela Amazônia no ecossistema global é enorme e inquestionável, visto que, dentre diversos outros fatores, se trata da maior reserva de biodiversidade mundial, tendo um papel importantíssimo no equilíbrio ecológico e climático de nosso planeta. Desse modo, o Brasil, ao deter 60% da floresta em seu território, é visto internacionalmente como um ator crucial no que diz respeito à mitigação do aquecimento global e dos efeitos das mudanças climáticas antropogênicas. Parece-nos que, no entanto, esse senso de responsabilidade é mais presente de fora para dentro, do que de dentro para fora; ou seja, mais nos outros países do que no próprio Brasil. Como você vê esse cenário?

Eu acho que lá fora há essa compreensão da importância da Amazônia em termos climáticos e da biodiversidade. Há também uma questão cultural dos povos indígenas, eles de fato têm uma ressonância em camadas intelectuais, de formadores de opinião e em lideranças. No Brasil, em geral, eu acho que a Amazônia é pouco entendida. Pouca gente visita a Amazônia, temos poucos pesquisadores brasileiros estudando a Amazônia. O Brasil está um pouco de costas para a Amazônia. A Amazônia é tratada como um consenso oco, em que todo mundo diz que é importante, mas todas as vezes que ela foi ameaçada não houve mobilização nas ruas a defendendo. Talvez ainda apareça, mas, por enquanto, não. Todo mundo fala da importância, mas a ação é pouca.

Na Amazônia, há experiências interessantes. Temos os povos originários no front da luta pela defesa da floresta. Temos uma geração que estava envolvida com organizações socioambientais e foram para lá, como eu ou outros pesquisadores. Temos um grupo pequeno, mas aguerrido, de brasileiros em instituições de pesquisa e nas universidades que conseguiram ter um trabalho extraordinário de inovação, de criação de áreas protegidas e de monitoramento da floresta. Temos a esperança de que as soluções brotarão de lá, como no passado: a luta do Chico Mendes, a autodemarcação... A própria arqueologia avançou bastante, e alguns arqueólogos brasileiros estão na liderança intelectual. Eu acho que, pelo menos em Belém, as pessoas estão conectadas com sua origem cultural. Claro que existem pessoas que chegam na Amazônia com outros interesses, não entendem a floresta e geram conflitos na região. Mas a resistência em defesa da floresta veio da própria Amazônia, veio muito pouco do resto do Brasil e veio um pouco do apoio internacional. Esse apoio, no entanto, não é massivo, é um apoio em camadas; mas muito importante, porque é formado por camadas de poder político e financeiro. Isso já é uma boa contribuição.

Frente à conjuntura atual de alta no desmatamento ilegal da floresta, com avanço e impunidade de crimes ambientais, destacando a extração ilegal de madeira, garimpo e grilagem de terras, de que maneira a pauta da proteção e restauração da floresta pode ganhar mais visibilidade e adesão na sociedade brasileira?

Quando eu vim trabalhar na Amazônia, em 1987/88, a região enfrentava muitos problemas ambientais e sociais. Havia muita violência, assassinato de lideranças ligadas aos movimentos sociais, e o desmatamento estava fora do controle. Houve um início de um esforço de políticas públicas durante o governo Sarney. Essa sequência foi avançando, cada governo fazendo um pouco mais: Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula. Estávamos em um período de aperfeiçoamento de políticas de combate ao desmatamento, isso gerou resultados importantes até o primeiro mandato da Dilma. No segundo mandato, com a crise política, o impeachment, a entrada de Temer, o desmatamento começa a aumentar. No atual governo, o Brasil perde o controle e a situação se agrava muito.

Eu faço essa perspectiva porque é como se, de alguma maneira, estivéssemos voltando para os anos 80. A situação é similar, em termos de escala. Temos garimpo, extração de madeira e desmatamento em patamares quantitativos muito parecidos. A diferença é que nesses 30 anos fomos descobrindo o quanto a floresta é mais importante. Nos anos 80 não tínhamos esse entendimento, a agenda do clima estava nascendo e não se falava em mudança climática. Já nos preocupávamos com a Amazônia, mas esse entendimento do motivo pelo qual a floresta precisa ficar de pé só se aprofundou nesse período. De forma paradoxal, nós entendemos mais, o mundo entendeu mais, há mais pessoas conscientes no Brasil (ainda que insuficientemente), temos mais conhecimento de como fazer, mas, ao mesmo tempo, as coisas pioraram muito.

Isso mostra que um governo pode fazer muita coisa ruim ou muita coisa boa. O poder do Estado é muito grande, principalmente na Amazônia, onde temos 2/3 do território nas mãos dos governos federais e estaduais. Isso em terras indígenas (no sentido de que os indígenas têm usufruto da terra, mas não possuem a posse), nas unidades de conservação, nas áreas de reforma agrária e nas áreas que não estão destinadas. Isso tudo soma 2/3 do território. Quando o governo pega esse patrimônio e decide ter políticas antifloresta, o resultado é trágico, como estamos tendo agora. Não há demarcação, há redução de área, redução de fiscalização, permissão para o garimpo, redução no esforço de combate à extração ilegal de madeira. O resultado é a piora. Esse resultado não é por acaso, é um projeto de governo. A situação é extremamente grave, isso nos coloca em uma situação difícil.

A Amazônia está com 20% do território desmatado, e os cientistas estimam que mais 20% de seu território seja composto por florestas degradadas (que aparecem na estatística como floresta em pé, mas são florestas que estão na UTI ou na enfermaria). Se tivermos eventos climáticos extremos, como secas e El Niños, possivelmente o fogo vai se espalhar nessas florestas que estão “hospitalizadas”, e elas morrerão rapidamente. Podemos, em menos de 10 anos, chegar ao ponto do não retorno, temido pelos cientistas. Ou seja, a partir daí, mesmo que o mundo resolva agir, que o Brasil crie juízo, já era. A floresta terá entrado em um processo irreversível de savanização, no qual não haverá mais conserto no sentido do nosso tempo, do nosso tempo histórico. É uma situação extremamente grave e que se resolverá nessa década. Do jeito que as coisas estão indo, para salvar ou para condenar, só temos essa década. Precisamos de um esforço extraordinário de contenção do descalabro que está acontecendo. Talvez esse de fato seja o momento mais difícil da existência da floresta ao longo de sua convivência com os humanos.

Os humanos estão aqui há 14 mil anos, durante 99,9% desse tempo eles não causaram problemas, interagiram muito bem com a floresta. Essa floresta é produto também dessa interação cultural com os povos originários. Depois, chegaram os brancos, mas, ainda assim, não causaram grandes problemas. Até que, nos anos 70, cria-se essa confusão toda. E ainda mais durante os últimos três anos, que é uma fagulha nesse tempo. É um tempo curto, mas dramaticamente danoso e assustador.

Em um eventual cenário em que o poder público volte a tomar a frente na proteção da Amazônia, quais políticas públicas governamentais podem ser mais efetivas como meio de conter a destruição ambiental e assegurar a restauração da floresta?

No Amazônia 2030, nós elaboramos o que talvez seja a melhor síntese para essa questão. Vamos olhar só o copo meio cheio nessa primeira parte da resposta: temos 83 milhões de hectares desmatados, o que corresponde ao tamanho da Alemanha e da Espanha em área desmatada. Ou seja, em 40 anos desmatamos tudo isso. Dessa parte, 30% estão abandonadas. Houve o desmatamento, mas essas áreas não estão mais sendo usadas, é terra degradada. Além disso, 60% são subutilizadas, sendo somente 10% agronomicamente bem utilizadas. Isso significa que temos muita área desmatada que poderia abrigar toda a demanda de expansão de cidades, de mineração industrial, de reflorestamento... O Brasil poderia, nos próximos 10 anos, usar essas áreas abertas sem precisar desmatar mais.

O resto, os 330 milhões de hectares de floresta, tem todas essas coisas que estamos descobrindo. A primeira boa notícia é que não precisamos desmatar essa floresta, não faz sentido econômico. O sentido econômico é aproveitar as áreas que já foram desmatadas. A floresta não é um vazio econômico nem social. Tem pessoas morando e agindo economicamente. Elas precisam de ajuda, de apoio. É preciso levar internet e energia. Essas pessoas podem ser incorporadas ao século XXI sem perder as condições de usufruir da sua cultura.

Podemos gerar riqueza na floresta. A floresta está trabalhando sem parar pela humanidade. A gente tem de pagar para essas florestas, é preciso um mecanismo de transferência para esses povos que estão fazendo um trabalho de guarda-parque para a humanidade por um custo ridiculamente baixo. A humanidade tem de criar um mecanismo de manter a floresta em pé remunerando bem essas pessoas. Podemos imaginar vários mecanismos, desde transferência de renda (bolsa-floresta, bolsa-verde) até pagamento de serviços ambientais por mecanismos não muito complexos. O satélite vai fazer com que ele mantenha essa floresta. É uma discussão complicada sobre quem tem direito de receber. Essa confusão toda faz com que estejamos há 10 anos patinando em torno disso sem avançar.

Tem muita gente na Amazônia; muitos jovens que estão sem emprego e sem educação qualificada. É preciso uma agenda para essas pessoas. Talvez a solução não esteja na floresta nem na área desmatada e, sim, nas cidades. As pessoas na Amazônia poderiam se conectar com o mundo se tiverem uma internet melhor. Os estudos mostram a vocação da nossa juventude e como ela pode se inserir no mundo. Qual é o diferencial da Amazônia? Ainda precisamos descobrir, não está claro o modelo. Por isso pensei em criar o Centro de Empreendedorismo.

São três coisas: pessoas jovens (que representam oportunidade de desenvolvimento), floresta em pé (valor estratégico) e muitas áreas desmatadas (que podem ser aproveitadas para muitas coisas, inclusive reflorestar e sequestrar carbono). Olhando tudo isso, há um plano para apresentar. O Brasil já mostrou que sabe como combater o desmatamento. Agora é preciso acoplar o combate com alguma solução socioeconômica. O Amazônia 2030 está focando em qual é a solução que podemos testar. Eu tenho esperança de que uma mudança de governo no Brasil, para um governo mais democrático e responsável, possa trazer o desmatamento para taxas mais administráveis. No próximo ciclo político, teríamos condição de trazer o desmatamento para próximo do que era em 2012: em torno de 4 ou 5 mil km². Hoje estamos em 13 mil km². Precisamos baixar para 4 ou 5 mil até 2026 e, de 2027 a 2030, aprofundar o ganho e chegar em um número ainda menor. Para isso, precisamos incluir os jovens, melhorar as cidades, criar mecanismos de transferência para a economia da floresta e incrementar uma agenda de uso das áreas desmatadas em escala maior. Agora, precisamos cortar o desmatamento absolutamente excessivo, desnecessário e criminoso.

Gostaríamos de abordar a questão do desmatamento em relação ao agronegócio e à dinâmica de terra. O agronegócio, que, apesar de se tratar da principal atividade econômica de nosso país, e cuja grande parte de sua produção é advinda da Amazônia, também é uma das atividades responsáveis por grande parte do desmatamento ilegal da floresta. O que se vê, de fato, é um tripé quando se diz respeito ao desmatamento: o agronegócio com a soja; a agropecuária, e a dinâmica de terra. O que é necessário para recalibrar ou repensar o modelo dessas atividades no país? Como a gente consegue, dentro da meta de diminuir o desmatamento, resolver esses três pilares do desmatamento?

A redução do desmatamento no ciclo de 2004 a 2012 foi fruto de um entendimento claro de como se movia o desmatamento. Há uma abundância da floresta. Essa floresta era livre para quem chegasse, e o Estado tinha dificuldade em exercer o seu papel de ordenador desse território tão grande. O Estado brasileiro, nos anos 70 e 80, abriu muitas estradas e frentes de ocupação. A cada estrada aberta se criava uma condição favorável para a ocupação irregular, para a invasão e para o desmatamento.

O necessário era fechar a fronteira. Como? Criando áreas protegidas, mudando radicalmente o incentivo da terra. A busca da Amazônia era a busca pela terra. As pessoas vendiam madeira, ocupavam e esperavam, no mínimo, vender essa terra quando uma estrada passasse. Essa foi a dinâmica que moveu o desmatamento, principalmente até os anos 90.

Nos anos 70 e 80, o governo queria que desmatasse, ele pagava para desmatar. A política era: te dou o título da terra se você a desmatar. O desmatamento era a política oficial. Nos anos 90, a política já não era essa, o governo reconheceu o problema e também não tinha mais dinheiro para pagar pelo desmatamento, devido à crise fiscal. O desmatamento passou a ter outra característica. Por que o desmatamento continuava? Porque as forças econômicas continuavam avançando para a floresta, se beneficiando do estoque excessivo de estradas-fantasmas abertas. Toda nova estrada criava uma nova onda de ocupação. O que aprendemos a fazer? Criar um muro de unidade de conservação bloqueando essas frentes de expansão. As unidades de conservação titulam a área em nome da conservação, elas inibem o invasor porque ele nunca conseguirá ser titular da área se invadir.

O desmatamento é um investimento, custa de mil a 2 mil dólares desmatar um hectare, então não é rentável entrar em uma área protegida, como terras indígenas ou parques. A criação desses parques foi estratégica. Não houve um aumento da fiscalização, mas havia satélites melhores, uma fiscalização mais inteligente e punitiva, capaz de destruir o equipamento do infrator. Esse conjunto de medidas foi o que deu resultado, foi muito bem pensado. Muitas áreas foram criadas entre 2003 e 2006, principalmente. Criamos uma área duas vezes maior que o tamanho da Califórnia em unidades de conservação na Amazônia. É muita coisa, mas ainda sobrou uma área correspondente ao tamanho de uma Califórnia e meia para ser criada, porque não deu tempo de fazer tudo. Esse pedaço que faltou é onde hoje temos muito desmatamento e grilagem. Precisamos completar esse trabalho. Nós sabemos exatamente onde estão esses polígonos, essa informação espacializada é muito clara.

Temos um mecanismo legal, um rito de criação de terra indígena e um conjunto de instrumentos disponíveis que ainda não foram totalmente desconstruídos pelo atual governo (se ele ficar mais um tempo, vai desconstruir). Ainda podemos voltar a operar com esses mecanismos que são constitucionais, que estão no topo do nosso marco legal.

Existe uma vertente de pensamento que vê nos avanços tecnológicos a principal solução para os problemas que são atualmente encontrados na Amazônia – que inclui, por exemplo, monitoramento da floresta em tempo real, uso de Blockchain no mercado de agroprodutos, tokenização na questão de acesso à terra etc. Desse modo, por meio da tecnologia conseguiríamos estabelecer novas relações entre a natureza, o espaço construído, a produção e o crescimento econômico. No entanto, existem vários componentes que essa maneira de pensar exclui. Como você vê o papel da tecnologia no cenário de desenvolvimento da Amazônia? Existe uma vertente de pensamento que vê nos avanços tecnológicos a principal solução para os problemas que são atualmente encontrados na Amazônia – que inclui, por exemplo, monitoramento da floresta em tempo real, uso de Blockchain no mercado de agroprodutos, tokenização na questão de acesso à terra etc. Desse modo, por meio da tecnologia conseguiríamos estabelecer novas relações entre a natureza, o espaço construído, a produção e o crescimento econômico. No entanto, existem vários componentes que essa maneira de pensar exclui. Como você vê o papel da tecnologia no cenário de desenvolvimento da Amazônia?

A tecnologia sempre é uma promessa, e ela pode ter um papel importante, mas ela não vai conseguir resolver o problema no tempo que precisamos. A questão da Amazônia precisa ser resolvida ainda nesta década, e a tecnologia não vai estar pronta para dar as respostas aos nossos problemas. Eu acho que, principalmente, precisamos melhorar alguns aspectos da tecnologia que são necessários agora. A boa notícia é que isso já está avançando. As imagens dos satélites hoje são muito melhores, são usadas para combater o crime, mas também para gerar novos conhecimentos. O sistema LIDAR (Light Detection and Ranging) nos permite detectar, debaixo do dossel, os sítios arqueológicos. Eu acho que valeria a pena aplicar esse sistema na Amazônia. Nós descobriríamos diversos sítios arqueológicos e poderíamos delimitar e proteger essas áreas. No campo do conhecimento da biodiversidade, a possibilidade de realizar o sequenciamento de genomas seria fantástica. A ciência está pronta para fazer isso.

Um terceiro caminho seria levar internet para as comunidades. Os garimpeiros já têm internet de boa qualidade, e os povos indígenas, que estão brigando com os garimpeiros, não. Fizemos uma campanha para levar uma placa solar e internet para os Mundurukus, mas eles ainda estão pouco equipados. Os jovens indígenas querem entrar na tecnológica sem perder a cultura. Eles querem aprender a filmar. O Centro de Empreendedorismo deve focar em levar para aqueles que estão na última milha, os quilombolas e os indígenas, a melhor tecnologia possível. No momento em que tiver internet e eletricidade, é preciso levar as melhores formas para organizar ideias de negócios, NFT, Blockchain... Dar a esses jovens, que estão na ponta, as condições para lutarem por seu território em condições mais razoáveis. Eles estão enfrentando uma tropa do mal superequipada e não têm nada para se defenderem. Algumas agendas nós podemos fazer agora, em parte, fora do Brasil. De certa maneira, temos tecnologias aliadas nesse curto prazo, mas eu não acho que o Vale do Silício vai resolver o nível de complexidade que têm as florestas tropicais. Precisamos de algumas coisas da tecnologia, mas outras, não. Agora precisamos de boas políticas públicas. Despois de 2030, quando entregarmos o bastão para a próxima geração, espero que essa tecnologia possa fazer uma diferença maior.

Outro lado do componente humano da Amazônia é o dos povos indígenas. Há uma forte disputa por terras nos territórios indígenas amazônicos, enquanto esses são os locais onde a floresta é mais preservada e que fornecem uma barreira para o desmatamento. De que maneira o conhecimento e o estilo de vida indígena podem contribuir para preservar a floresta para além de suas reservas? Como esse saber pode ser incorporado por políticas públicas ou privadas de preservação, trabalhando em aliança com essas populações?

As sociedades indígenas eram mais sofisticadas, mais complexas e mais numerosas que as nossas. A arqueologia está mostrando que havia entre 5 e 10 milhões de indígenas na Amazônia antes da chegada dos europeus. Esses povos domesticaram 90 e poucas espécies de plantas. O processo de domesticação é um processo de sofisticação de uma sociedade, ainda mais em uma floresta tropical que tem milhares de espécies. Para isso, é preciso ter uma capacidade de entender a autoecologia de uma espécie, separá-la, fazer melhoramento genético... O cacau foi domesticado, a mandioca, o açaí, o maracujá... Os povos também manipularam seus territórios, criando solos orgânicos. O solo terra preta dos indígenas é quase eterno, capaz de resistir milhares de anos sem perder sua fertilidade. Havia uma sociedade orgânica. As pessoas não vão encontrar monumentos de pedra porque não tem pedra na Amazônia, é uma sociedade de barro. Encontramos cerâmicas sofisticadas de barro.

A arqueologia está mostrando, por meio do sistema LIDAR, que havia uma rede de estradas. Isso nos dá uma pista do destino da Amazônia. Não é um ambiente para ser simplificado e domesticado, os indígenas já tinham entendido isso. É um ambiente natural que precisa ser mantido dessa forma. De fato, teremos de restringir a ocupação humana intensiva nesses 20% já desmatados, que é uma área muito extensa. Precisamos proteger a floresta. Se vamos usá-la, deve ser com o conhecimento acumulado pelos povos indígenas, que a manejaram para produzir qualidade de vida para 5 ou 10 milhões de pessoas. Quando encontramos restos humanos nas escavações, é possível ver que a dentição era boa. A vida não era no limite, era uma vida de abundância.

É preciso uma lente para entender a floresta, em geral, só os povos originários, os botânicos e os ecólogos conseguem entender. A maior parte das pessoas enxerga como uma bagunça, acham que é uma coisa caótica. O ocupante prefere destruir o que não entende. Essa é uma questão um pouco mais profunda. Temos motivos racionais para não destruir, mas o forasteiro não tem o menor apreço pela floresta. Ele a vê como o nada. Ouvimos isso: “Aqui não tinha nada. Nós chegamos e colocamos soja. Antes não existia nada”. Isso reflete a forma como os brasileiros, o agronegócio e os setores que migraram para a Amazônia entendem a floresta.

Por último, o Eduardo Neves diz que, de certa forma, todos os povos têm os seus templos e seus grandes monumentos. Os egípcios não aceitariam uma nova ocupação que destruísse as pirâmides. Ou os peruanos não deixariam destruir os monumentos incas ou Machu Picchu. Ou derrubar a Torre Eiffel em Paris, porque descobriram uma jazida de petróleo abaixo dela. A floresta é o nosso grande monumento cultural, é produto da nossa interação. Esse passo cognitivo precisa ser dado. Se a floresta for percebida como patrimônio cultural e natural, sua destruição seria algo que fere profundamente o senso de pertencimento do brasileiro. Vai além das razões utilitárias. Essas razões são necessárias, mas são insuficientes para segurar a floresta. Precisamos ir além disso.

Se levarmos em consideração que esse é um ano-chave, devido às eleições, gostaríamos de finalizar perguntando: qual futuro podemos esperar em relação à preservação e à manutenção da Amazônia?

A Amazônia só vai sobreviver se estivermos em um regime plenamente democrático. O governo atual não se preocupa com a Amazônia, é um governo antiamazônia. O futuro da floresta vai depender de uma mudança de governo, senão teremos um ambiente de conflagração, cujo desfecho pode ser atingir o ponto de não retorno. Aí será tarde demais. Eu temo muito por uma reeleição, teríamos uma situação extremamente dramática. Não diria que é irreversível, porque a dinâmica humana sempre traz alguma esperança, mas eu diria que seria extremamente difícil mudar o patamar. A mudança política pelo voto e pela democracia é absolutamente essencial. Cada voto, cada ato, cada manifestação, cada pressão conta. Essa é a batalha da existência humana, do ponto de vista dessa relação “nós humanos x entes não humanos”. Esse é o momento mais importante, até agora, de nossa existência por aqui.

ADÈLE NAUDÉ SANTOS

03/04/2022 - -

Arquiteta e urbanista, com carreira combinando prática profissional, pesquisa e ensino. Ganhadora de concursos internacionais de design, com publicações de trabalhos em revistas em todo o mundo e trabalho em culturas diversas como o Japão, a África e os Estados Unidos. Sua carreira acadêmica inclui cátedra dentro dos programas de pós-graduação de Harvard, Rice University e University of Pennsylvania, onde atuou como Presidente do Departamento de Arquitetura e da University of California, onde foi decana fundadora da Faculdade de Arquitetura da UCSD. Foi reitora da Escola de Arquitetura do MIT, de 2004-2013; atualmente é professora de Arquitetura e Planejamento na mesma universidade.

Pensamos em iniciar esta conversa com o tema da educação, uma vez que ela é a base para o desenvolvimento de novas gerações as quais, em última análise, construirão o nosso amanhã. Um de seus trabalhos mais importantes foram os 10 anos como reitora na Escola de Arquitetura e Planejamento do MIT, responsáveis por cimentar o papel pioneiro da Instituição, dentro e fora de suas disciplinas. Como você vê sua experiência no MIT no que diz respeito ao papel exercido pelos educadores na formação de possíveis futuros?

Eu acho que o MIT é um lugar especial porque, desde o início, ele teve uma agenda social forte, com intuito de construir um mundo melhor. São a mão e a mente, juntas, moldando o mundo. Sempre tivemos isso como base. Nós construímos os fundamentos da Escola a partir disso, e a agenda social sempre fez parte dela; essa máxima sempre fez muito sentido para mim.

Os tipos de estudantes que tendem a vir ao MIT, em comparação a outras escolas de Design, como Harvard, vêm com uma espécie de consciência social, querendo causar um impacto positivo no mundo. Portanto, você participa na formação de pessoas que querem fazer a diferença no mundo, de várias maneiras.

Você pode, por exemplo, ter um estúdio de habitação de baixo custo que lida com coisas que não são extremamente atraentes enquanto assunto arquitetônico, mas os estudantes estão interessados e ingressam nele, porque realmente têm esse impulso como pano de fundo. Acho que é isso que eu gostaria de dizer para começar.

Os últimos dois anos foram um período de múltiplas mudanças em nosso status quo, em que tivemos de repensar inúmeros hábitos do nosso quotidiano. Devido ao distanciamento social imposto pelo vírus da Covid-19, da noite para o dia, enquanto escolas de todo o mundo fechavam suas portas, sem saber quando voltariam à normalidade, tivemos de rapidamente nos adaptar a um modelo de ensino e pesquisa on-line. Em relação ao ensino on-line, as novas possibilidades inauguradas pelo aprendizado digital exigem uma nova conceituação da ideia de lugar quando se trata de educação?

É um obstáculo, é claro. Em primeiro lugar, esse aprendizado digital não foi fácil, e a maioria dos professores e alunos nunca chegaram a se adaptar a ele, embora o tenham acrescentado a seu vocabulário comum. E, certamente, no que se refere a nossa disciplina, a arquitetura não é uma coisa fácil de se fazer on-line. Tivemos de analisar a forma como ensinamos. Acho que há algumas disciplinas, como história, por exemplo, ou alguns assuntos relacionados à tectônica, que são mais adaptáveis ao formato on-line.

Eu, por exemplo, tentei dar uma aula sobre protótipos de habitação, fazendo uma análise de exemplos ao redor de todo o mundo. Foi extremamente difícil de fazer. Mas uma coisa que fiz, a qual achei bastante interessante, foi selecionar vários arquitetos que representavam diferentes pontos de vista sobre a temática, e fazer com que os alunos entendessem seu trabalho e depois participassem de uma discussão diretamente com eles on-line.

Infelizmente, as turmas eram muito pequenas, porque a maioria das pessoas havia desistido durante o ano com medo de perder a experiência presencial. Há outras maneiras de lecionar nesse modelo e que podem fazer muito sentido, mas é algo que você tem de praticar e se adaptar. Acho que foi Mark Jarzombek, professor de História e Teoria da Arquitetura no MIT, que teve cerca de 200 alunos em sua turma. 

Há uma escala que é difícil de administrar, certo?

Eu acho que a escala é difícil de administrar. Ela está perfeitamente sintonizada com certos assuntos.

Ao mesmo tempo, as pessoas começarão a realizar essas atividades de aprendizagem a partir de casa.

Acho que as pessoas encontraram um grande alívio por não ter de estar ali das nove às cinco todos os dias. Particularmente em um contexto como o do MIT, no qual os preços das moradias são muito altos e as pessoas preferem morar mais longe, onde são capazes de pagar o aluguel. Particularmente, por parte dos funcionários – aquelas pessoas que são essenciais para manter o empreendimento em andamento. Para eles, ser capaz de trabalhar a partir de casa foi incrivelmente útil. Trabalhar presencialmente três vezes na semana é o melhor contexto que eles podem imaginar, porque, particularmente naquele estágio de em que se tem filhos e assim por diante. Além disso, pense no tempo que os professores têm de se dedicar ao ensino. Isso pode ser administrado nos dias em que lecionam e, nos dias em que não estão dando aula, podem trabalhar, pesquisar, fazer leituras e tudo o mais. Há um aspecto realmente otimista nisso.


Em paralelo à sua carreira acadêmica, você também tem o seu próprio escritório de arquitetura, Santos Prescott e Associates, com o qual concebeu vários projetos nos quais existia uma estreita intersecção entre o morar e o trabalhar. Você trabalha com essa relação trabalho-moradia há muitos anos em sua prática arquitetônica, alguma coisa mudou nestes últimos anos? E, levando em consideração que o período de pandemia foi um ampliador de novas possibilidades em relação ao nosso modelo de trabalho e costumes, você acredita que a Covid possibilitou algumas das coisas que você já pensava antes? Como você vê esses projetos ou concepções iniciais sobre como abordar a ideia de trabalho-moradia?

É um fato conhecido que eu sempre morei e trabalhei no mesmo lugar. Isso ocorreu, em parte, porque eu queria ser arquiteta em tempo integral e educadora também em tempo integral. De qualquer forma, é possível fazer isso – morar e trabalhar no mesmo local. Você pode tirar o tempo gasto no transporte e reorganizar seu dia entre o que você faz à noite e o que você faz de dia.

Mas, para a maioria dos lugares do mundo, o zoneamento torna isso problemático; este hibridismo não é comum ao zoneamento regular. Na verdade, esse tipo de ideia de morar e trabalhar no mesmo local tem sido desafiada em todos os lugares. Ela entrou muito em minha vida na Califórnia, onde os artistas habitavam os velhos edifícios industriais, porque ninguém os queria. Isso, no entanto, não era permitido pela legislação local. Houve grandes discussões e, enfim, os artistas ganharam. Assim, morar e trabalhar no mesmo lugar foi realmente absorvido, mesmo que não permitido legalmente pelo zoneamento. Eventualmente, o zoneamento mudou. Parte disso se deveu a um ponto de vista das autoridades: como poderiam provar que as pessoas estavam realmente trabalhando onde simultaneamente viviam sem ir verificar?

Obviamente, o que provamos nesse período foi que viver e trabalhar no mesmo lugar pode ser realmente frutífero. Acho que isso, na verdade, abre todo tipo de possibilidade, porque não há quase lugar do mundo em que viver e trabalhar em um só lugar não seja algo benéfico. Mas, sinceramente, desde o início, sempre achei que isto iria ganhar maiores dimensões a partir do momento em que a Internet se tornasse funcional e disponível a todos. Por que seria importante o local onde você está? Acho que esta é uma coisa muito importante, que definitivamente é resultado deste período.

Outro produto da pandemia foi que se tornaram evidentes inúmeras falhas no planejamento urbano das cidades, assim como a urgência de mudança desse paradigma. Há lições que esse período trará para as formas como construímos as cidades e nos relacionamos com o espaço urbano?

Vejo amigos meus, cujos escritórios, por exemplo, voltaram à normalidade, e agora têm apenas dois terços do pessoal que estaria lá antes em tempo integral. Acho que isso ocorreu em quase toda profissão, na verdade... Nenhum destes funcionários realmente precisava estar lá. Começa a fazer algum sentido que se possa ter espaço disponível de back-office, longe dos centros das cidades, o que o torna muito mais barato. Você não precisa estar no centro da cidade para muitas dessas funções. Daria para começar a pensar em hierarquias de trabalho e no que isso significa em termos das topologias que se constrói. Tudo sempre foi dependente da noção de centralidade, e isso não é mais importante. Acho que não podemos voltar a supor que todos vão ter um emprego das nove às cinco na cidade. Simplesmente não vão.

Você acha que isso leva a uma espécie de democratização sobre como a cidade está organizada e quem tem acesso a ela?

Eu não sei. É claro que, na maioria das vezes, estamos lidando com adaptações do que existe, mas novos lugares podem produzir diferentes cenários ao todo. Não precisamos sequer estar em cidades tão grandes. Muitas cidades têm vários centros. Isso nos leva a pensar que talvez possa haver mais fragmentação dessas funções centrais. Normalmente, há sempre uma prefeitura, um, talvez dois, anfiteatros, uma grande biblioteca... A ideia de microcentros, de que eles estão divididos hierarquicamente, faz muito sentido. Quanto mais pudermos relocalizar essas funções melhor. A maneira como pensamos sobre este aspecto da construção da cidade está mudando bastante.

A habitação acessível tem sido um tema central em sua carreira. Uma das consequências da crise atual tem sido a escassez de moradias populares em conjunto com a elevação das taxas de desemprego, com as pessoas lutando para pagar suas despesas domésticas. Embora os problemas de insegurança habitacional não tenham começado durante a quarentena da Covid-19, mais e mais pessoas estão sendo excluídas do mercado habitacional, forçando-as a viver em situações de moradia precárias ou a se mudar para locais remotos. Qual é a responsabilidade dos arquitetos na produção de moradias populares e por que há um número tão limitado de profissionais engajados com essa questão?

Penso que temos de começar por algo mais básico: o sistema de crenças da governança nas sociedades. Ao longo dos anos, concluí que a habitação é tão importante que é a base para se ter uma vida produtiva. Não importa onde você esteja no mundo. Se você não tem acesso a um abrigo adequado, não pode estar higienicamente limpo porque não tem água, não pode estar seguro porque não há como trancar as portas... A moradia é completamente fundamental.

O direito à moradia, é claro, foi um movimento óbvio, graças ao foco internacional nisso. Havia conferências a cada quatro anos ou algo assim, eu fui a algumas delas em minha vida. Há muitas pessoas no mundo que acreditam no direito à moradia – ou no direito à cidade. A maioria das nações fingem que concordam com isto. Será que elas realmente colocarão em prática? Haverá dinheiro para isso? Existem estruturas organizacionais para isso?

Os Estados Unidos, é claro, são os vilões porque nunca acreditaram no direito à moradia. O último presidente que estava interessado em trazer alguma revolução lá foi Johnson. Mas aí entra o próximo grupo de políticos, e se livra daquilo. De qualquer forma, a questão é: isso tem a ver com o mundo público, tem a ver com a quantidade de dinheiro que se é designado para fazer isso.

Há, também, obviamente, a estigmatização das pessoas desabrigadas: um bom número delas pode ser de pessoas doentes, alguns podem dizer, “mas esse não é o ponto”. É sobre raça, religião e todas outras coisas que entram no meio, por isso nunca foi fácil. Neste momento, enfrentamos um cenário realmente patético. Para os arquitetos, fazer moradias acessíveis, em um país como este, é um processo muito complexo, porque você até pode conseguir cidades que vão conceder terrenos e há programas, mas nunca são grandes o suficiente. Então, tem toda uma série de regras que você tem de seguir, e muitas delas são totalmente limitantes e não necessariamente progressivas. É todo um processo incômodo, que duplica o tempo de absolutamente tudo. E não dá dinheiro para o arquiteto, você não pode cobrar honorários correspondentes.

Eu me envolvi com isso porque faz parte da história da minha família. Meu tio dirigia uma organização sem fins lucrativos que ajudava os sem-teto da periferia da Cidade do Cabo, e meu pai produzia moradias para eles sem custos. Sempre tive isso em meu sangue. A verdade é que não se pode ganhar a vida com isso de uma maneira decente. Eu ganhei uma competição em Los Angeles e levei oito anos para construir a moradia.

O Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles fez uma exposição chamada Blueprints for Modern Living [Plantas para a vida moderna] e, como parte disso, decidiram ter uma peça de exposição. Eles fizeram uma competição internacional e eu ganhei. (Eu fiquei chocada de ganhar, para ser sincera.) De certa forma, eu não queria, porque precisávamos produzir moradias em um local que eles tinham escolhido, nas colinas de Hollywood. Antes de tudo começar de verdade, todos os moradores locais gritavam e esperneavam porque não queriam morar ao lado de uma habitação de interesse social. “Não no meu quintal”, esse tipo de discurso.

O pior foi que muito poucos dos desenvolvedores que decidiram participar eram qualificados. Eu consegui alguns profissionais de Hollywood Hills, mas que realmente não tinham experiência de trabalho conjunto. Tivemos de encontrar outra equipe para construir. Bem, levou um tempão. Nós redesenhamos muitas vezes. A pessoa responsável por essa área específica da cidade lutou muito para que nossa proposta da competição fosse construída. Então, toda vez que surge outra possibilidade, penso: “Meu Deus, quero passar por tudo isso de novo?”.

Por outro lado, trabalhando em um lugar como o Japão, onde estou construindo dois grandes projetos, toda a ideia de habitação social era algo absolutamente usual. Não havia obstáculos sociais; as pessoas tinham esse propósito, era parte de seu dever cívico social. Os empreiteiros locais escolhidos trabalhavam bem. É preciso pessoas realmente qualificadas na administração para entender o valor de um bom projeto. É por isso que as pessoas simplesmente não querem fazer isso na maioria dos lugares.

Isso é interessante, porque às vezes os lugares que mais precisam não têm a estrutura necessária para que isso aconteça. Torna-se impossível para os arquitetos intervir nesse domínio.

Não é apenas uma coisa americana, é uma coisa latino-americana, sul-africana, é de todo lugar. Para construir moradia para os pobres, eles procuram os terrenos mais desinteressantes, com preços mais baratos, nas margens das cidades, longe de onde as pessoas trabalham. Mesmo com mudanças na política pública, geralmente não há coragem para modificar isso, é muito complicado.

Vou fazer uma oficina na Cidade do Cabo agora, onde eles decidiram construir moradias sociais na área interna da cidade, próximo ao centro e ao local onde os empregos estão. Mas eles não conseguiram concretizar a ideia, porque a cidade não vai fornecer o dinheiro. E ninguém lá descobriu as parcerias público-privadas, que é a maneira óbvia de fazer isso. Mesmo em Los Angeles, sempre foi o lucro – o privado –, e a não lucratividade – o público – trabalhando juntos. Eles descobriram isso rapidamente, encontraram maneiras de se construir moradias sociais devido a essas parcerias público-privadas iniciais.

Entendendo que a arquitetura tanto molda como é moldada por nossas sociedades, a qual é abertamente influenciada pelo contexto social e histórico de seu tempo, em sua opinião, a pandemia trará alguma mudança estrutural na profissão de arquiteto? Há algo que possamos esperar ou alguma mudança à qual o profissional terá de se adaptar?

Eu diria que muito menos no campo da arquitetura do que no de planejamento urbano. Penso que as mudanças ocorrerão em uma escala maior, a da cidade. E a arquitetura vai continuar sendo o que é. Penso que haverá mais discussão sobre o que é construído e o que não é, haverá mais responsabilidade. Acho que inevitavelmente veremos mais processos públicos, o que as pessoas odeiam, mas parece fazer sentido. Particularmente, é algo que engaja a comunidade.

Nesse sentido, quais são as respostas espaciais que precisamos abordar para lutar por um amanhã mais justo? No sentido de que, se as mudanças serão mais do lado do planejamento, como podemos construir cidades mais justas e menos desiguais em resposta à pandemia da Covid-19?

Temos de voltar às causas profundas de muitas questões. Temos de descobrir como construir para as pessoas de menor poder aquisitivo, isso é certo. Vamos ter algumas mudanças políticas reais. Acho que essas pessoas deveriam ser integradas nas comunidades como um todo.

A ideia de guetos de pessoas pobres é absolutamente inaceitável. Vamos ter de descobrir o que pode ser compartilhado e como se pode unir pessoas de diferentes níveis econômicos. Poderia ser um sistema de espaço aberto. São sempre esses tipos de coisas que podem trazer comodidades para a cidade, mas compartilhando-as.

Está muito entrelaçado com a política, é claro, e com o contexto econômico em que está inserido. Estávamos tentando fazer isso em algum estúdio-piloto, para ver se conseguíamos preencher a lacuna. Vai ser bastante difícil. Isso requer um mar de mudanças, mas talvez agora seja um momento melhor para algumas delas. 

Estávamos discutindo moradias populares e o caminho para tornar as cidades mais equitativas. Elas dependem, como vimos, muito das políticas econômicas e de planejamento, e do tipo de estrutura que uma cidade consegue colocar em prática. Onde está a relevância da disciplina da arquitetura em relação ao futuro que teremos de construir?

Sinceramente, o problema é que temos de ser livres-pensadores. Você não pode aceitar os problemas só porque você sabe que eles não são corretos. Sim, eu acho que a arquitetura é também um negócio. As pessoas querem ganhar dinheiro, e há muitos atalhos envolvidos nisso. É aí que provavelmente o tipo de arquiteto que também é professor pode ter um grande papel, porque estamos lidando com questões teóricas, bem como práticas. Assim, por meio de projetos, como as oficinas que eu faço – as quais se tornaram bastante públicas –, nós podemos sugerir maneiras diferentes de fazer as coisas. Não temos o dinheiro envolvido para isso, é um conjunto de princípios. As grandes empresas nunca vão fazer outra coisa que não seja ganhar dinheiro, é o que elas fazem.

Trata-se também dos clientes. Quem são os clientes? Há grandes organizações, honestamente, que se importam. Devemos ter muito respeito por elas. Em geral, esta é uma questão muito difícil, mas não há outra maneira senão enfrentá-la.

CARMEN SILVA

15/03/2022 - -

Professora e urbanista; ativista pelo direito à moradia e líder do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). Foi coordenadora do Conselho Participativo da região da Sé na cidade por dois biênios, e, em 2018, foi conselheira municipal e estadual de habitação e das políticas públicas para mulheres.

A senhora é baiana e veio para São Paulo durante a década de 1990, em busca de melhores condições de vida. Gostaríamos de iniciar abordando a questão do seu movimento de migração para a capital paulista e quais eram suas expectativas em relação à cidade. Qual o futuro que a senhora imaginava com a sua chegada a São Paulo e qual foi a realidade que encontrou?

Eu vim para São Paulo, como todo imigrante, com o sonho de vir para uma grande metrópole e aqui conseguir trabalho e moradia; com todos os desejos que são de qualquer cidadão, independentemente do local de origem. Só que, quando eu cheguei em São Paulo, apesar de ser brasileira, eu me senti uma refugiada em meu próprio país. Eu vi que a cidade não era tão acolhedora naquele momento. Mesmo tendo uma aptidão em alguma profissão, a cidade não lhe dava essa abertura. Depois eu entendi que não fazia diferença estar aqui ou em qualquer outro lugar do Brasil, eu não ia me sentir acolhida porque eu não tinha nenhum pertencimento ao local. Essa foi uma desilusão naquele momento.

Como resposta à produção de um espaço urbano desigual e segregatório, que é uma realidade que se estende por diversas cidades do Brasil, surgem experiências de resistência popular pela permanência no espaço central das cidades, reivindicando edifícios e espaços públicos ociosos. Como a luta pelo acesso à cidade e à moradia digna têm se conformado ao longo país? Olhando para o caso de São Paulo, onde as articulações na cidade já são vistas como exemplos de mobilizações estruturadas, tanto do ponto de vista de governança como do financeiro e logístico, de que forma o caso paulista exerce influência em âmbito nacional?

O caso paulista, a nível de organização popular, exerce uma influência porque tem algumas súmulas de organizações que em outros lugares do país não têm. Por exemplo, os movimentos sociais e as lideranças se organizam no mesmo local em que está o Poder Público, ou seja, dentro dos conselhos, participando efetivamente dos conselhos gestores, das discussões do Plano Diretor.

Quando eu viajo pelo Brasil, vejo que as organizações sociais, a nível da região central, ainda são tímidas, não avançam na discussão de lutar por um centro urbano organizado. Essas ainda focam na moradia como eixo principal, sem ligar a moradia a outros direitos. Mas, de certa forma, hoje, com a comunicação mais rápida, com as redes sociais, com as grandes campanhas para explicitar que a problemática de política pública não está somente em São Paulo, temos grandes discussões, grande movimentação. Há um levante em que as organizações vêm discutindo, a nível nacional, a questão da moradia. Hoje estamos com uma ampla campanha, que é o Despejo Zero. Isso tudo está interligado, e estamos tendo essa troca, que é um compartilhamento de experiências.

Essa campanha do Despejo Zero é decorrente do cenário instaurado com a pandemia?

Isso, vem da pandemia. Apesar de estarmos em uma pandemia, houve e ainda estão acontecendo diversas ameaças de despejo. Temos quase 300 mil famílias em todo o Brasil que estão sob ameaça de reintegração de posse, sem contar os casos que acontecem sem grande divulgação.

A senhora começou a participar de reuniões do movimento de luta pela habitação e ocupações durante o final da década de 1990, época na qual a cidade de São Paulo passou por um processo de especulação imobiliária e aumento dos custos de vida em seu centro urbano, cenário que resultou na saída dos trabalhadores para bairros mais distantes, localizados nas franjas de seu espaço urbano. Nesse contexto também surge o MSTC propondo a organização dos trabalhadores em meio urbano e reivindicação do direito à habitação. O movimento, cuja origem data no ano de 1997, hoje, configura-se como um dos mais importantes movimentos sociais do país. Ao longo desses quase 25 anos de luta contra o déficit habitacional, onde são nítidos os avanços e ganhos sociais resultantes do movimento, quais mudanças você considera as mais importantes durante esse período?

Como ganho social, eu enxergo que as pessoas estão discutindo mais o problema da moradia. As pessoas entenderam que movimento sem teto não é um movimento de pessoas que estão em situação de rua, e, sim, um movimento de trabalhadores que não têm condição de financiar uma casa pelo sistema bancário, pelo sistema do capital.

Outro ganho é a questão de participação do próprio movimento nos mesmos locais em que o Poder Público está. Também vejo mais discussão dentro da academia e nos grandes eixos do próprio Poder Público. Discussões sobre como deve ser o financiamento, como deve ser o investimento em moradia popular. Nós temos uma grande percepção de que essa discussão hoje é muito mais ampla, mais aberta e mais transparente.

Hoje há vários atores discutindo isso, inclusive no âmbito privado. Outro ganho é a compreensão de que não podemos entrar em queda de braço com o Poder Público, mas podemos propor saídas viáveis, podemos discutir isso juntos. Ainda há uma conjuntura desfavorável, visto que a moradia popular não tem uma produção tão ampla quanto o mercado imobiliário em geral. Outra questão é a criminalização, porque, por mais que avancemos, ainda há muita criminalização dos movimentos sociais.

Gostaríamos de abordar a conjuntura de insegurança financeira e aumento de índices de desemprego no país nos últimos anos, ocasionada majoritariamente pela crise econômica desencadeada pela pandemia de Covid-19. Inúmeras pessoas foram despejadas de suas moradias ou passaram a viver em estados de extrema fragilidade. Em qual grau a pandemia de Covid-19 escancarou, como também agravou, as situações de desigualdade e déficit habitacional no país? E, como, a partir dessa conjuntura, a luta pelo direito humano de uma moradia digna configura-se nos dias atuais como uma pauta ainda mais urgente a ser abordada?

A pandemia desencadeou e tornou visíveis os problemas que ainda estavam na invisibilidade. Na pandemia, as mulheres, mesmo trabalhando pela necessidade do sustento de sua família, foram as primeiras a serem demitidas. A pandemia tornou visível tudo o que estava invisível. Por exemplo, aumentou o número de pessoas em situação de rua. Hoje, temos famílias inteiras e não mais uma pessoa com dependência química ou que estava na rua porque desejou, individualmente. Quem está na rua são pessoas que foram despejadas, que moravam em coabitações... A solidão dos idosos também ficou em evidência. Muitas coisas despontaram com a pandemia, e nós, o Poder Público e todos os cidadãos temos de nos atentar a elas. São problemas reais do nosso país e de muitos lugares. O pacto da solidariedade evidenciou que só trabalhando em rede e na coletividade é que a coisa dá certo.

As mulheres são maioria nas ocupações, situação agravada pela violência doméstica, abandono parental e falta de apoio financeiro com os filhos. Elas são também a força motriz que comanda o movimento e as ocupações, sendo maioria também dentro das lideranças do movimento. Você poderia falar um pouco sobre essa a correlação entre a ampla organização feminina dentro dos movimentos de luta social urbana e os desafios vivenciados diariamente pelas mulheres na sociedade como um todo? Essa é uma correlação que se manifesta da mesma forma por meio da questão racial?

As mulheres já começam lutando por creche, por comida, por moradia. Quando essa mulher chega no movimento social, ela já vem com essa carga de experiência. Mesmo não percebendo, ela já lidera, já vem com o feminismo presente, porque está sempre lutando por direitos. As mulheres têm uma capacidade de mobilização, de contestar... Quando elas chegam no movimento, encontram um espaço em que há escuta e podem desenvolver suas habilidades.

Nós temos, no entanto, uma grande dificuldade por estarmos em um país machista e patriarcal. Por mais que as mulheres estejam em evidência e exercendo as mesmas profissões que os homens, elas ainda ganham menos. Precisamos pensar em uma reengenharia do trabalho da mulher, porque o trabalho doméstico, o trabalho do cuidado, ainda não tem remuneração. A mulher ainda tem de ter uma igualação, precisamos estar nos mesmos cargos nas grandes empresas. Ainda não temos essa condição de igualdade.

O movimento de luta pelo direito social à moradia é muitas vezes veiculado pelos meios de comunicação hegemônicos em tom criminalizatório e difamatório. Nesse sentido, as mídias sociais surgem como um novo canal de interlocução com o público em geral. Por meio dessa plataforma, líderes do movimento dão visibilidade à pauta e podem compartilhar narrativas, conhecimentos, assim como articular agendas e demandas. De qual forma a senhora acredita que os meios de comunicação virtuais, por meio de plataformas digitais, são capazes de avançar na aceitação e no reconhecimento da legitimidade das reivindicações do movimento?

Hoje a comunicação é muito mais rápida, e isso para nós é muito eficaz. Antes, quando sofríamos alguma agressão ou alguma ordem de despejo, dependíamos de alguém que viesse dar notoriedade. Hoje, não, com as redes sociais, assim que acontece alguma coisa a gente já está sabendo. Para além de mostrar as desgraças, a rede social é capaz de ter uma comunicação de chamamento, de dar informação e formação. É eficiente a rapidez de comunicação.

Gostaríamos de abordar a forma como os movimentos sociais podem contribuir para a academia. Qual a importância de unirmos a universidade à prática social, trazendo também para dentro das salas discussões sobre a efetividade das políticas públicas e a tensão social atualmente contida na forma que produzimos e ocupamos a cidade? E, para além disso, como o movimento pode contribuir para a discussão de novas formas de pensarmos o planejamento urbano de nossas cidades?

A transformação da cidade se dá quando temos a participação de todos. Hoje é muito evidente que as organizações sociais e o próprio Poder Público estão discutindo o direito à cidade. Para isso, é preciso um equilíbrio entre todos os poderes: público, popular e privado. Se isso não ocorrer, nada vai dar certo.

O que acontece hoje nas cidades é que há uma grande discussão real da importância de esses três elementos estarem em equilíbrio. Quando nós vamos para uma conferência discutir um plano de bairro ou discutir territórios, todos os elementos precisam estar juntos, senão, não dá certo. Essa é a grande diferença, essa abertura de propostas e conversas, essa escuta ativa. O movimento social está discutindo fachada ativa, qual é a melhor localização de um condomínio... Embora ainda seja uma discussão desigual porque as propostas que existem são para o mercado financeiro.


Atualmente, vivemos em um país imerso em uma conjuntura política marcada pela segregação social, o conservadorismo e o desrespeito às minorias. Atravessamos, de certa forma, um espaço de tempo distópico no qual profundas transformações estão em curso. Como você vê o futuro dos movimentos por moradia, e quais transformações precisam ocorrer, a nível de sociedade, para acelerarmos a construção de uma sociedade mais justa e igualitária? Você acredita que a pandemia teve algum impacto na direção desse futuro?

A pandemia teve um impacto na direção do futuro, ratificando um passado bem presente. A pandemia veio desencadear o que nós sempre lutamos: moradia. Quando a pandemia surgiu, a primeira coisa que se gritava era “Fique em casa!”.

E quem não tem casa, vai para onde? Essa sempre foi a nossa discussão. No futuro, o que temos de alcançar é que não dá mais para a participação ser isolada. Hoje a participação tem de estar em uma lista tripla: equilíbrio entre Poder Público, privado e popular. Senão outras pandemias ainda virão, pandemias reais que estão acontecendo com o surgimento desta atual. Hoje temos uma sindemia, uma série de problemas que a Covid trouxe: a fome, a miséria deplorável, a falta de saneamento básico, a falta da moradia. Foram várias pandemias em uma. Para o futuro, todos temos de rever como de fato é a nossa participação. E, mais do que nunca, a política pública tem de ser efetivada no Brasil, principalmente saneamento básico e educação.

VITA SUSAK

06/03/2022 - -

Pesquisadora independente e membra da Sociedade Acadêmica Suíça para Estudos do Leste Europeu. Doutorado em História da Arte pelo Instituto Estatal de Estudos de Arte em Moscou (1997). Antiga chefe do Departamento de Arte Moderna Europeia da Galeria Nacional de Arte de Lviv (1992–2016). Antiga professora na Universidade Nacional Ivan Franko (2011–2015).

Iniciamos esta iniciativa olhando para a pandemia, cujo início, com todas as incertezas, bloqueios e mortes, criou uma ansiedade mundial sobre o futuro que nos aguardava. Era como se o futuro tivesse sido suspenso. E, no momento em que conseguimos nos distanciar dos acontecimentos iniciais, parecia haver perspectivas mais positivas sobre o que o amanhã poderia trazer para a humanidade, pelo menos quando se tratava de evitar mais mortes. A guerra na Ucrânia, no entanto, perturbou esse progresso e apagou, para muitos, qualquer possibilidade de esperança ou de um reencontro com o progresso (seja ele social, cultural ou econômico). Hoje gostaríamos de discutir a relação entre esses dois eventos (pandemia e guerra), pensando sobre as transformações que suas inter-relações podem trazer para o nosso futuro. Vemos vários momentos ao longo da história em que a guerra e as doenças maciças se sobrepõem, uma se alimentando da outra. Um par de casos notórios inclui o surto de peste bubônica de 1348-1351, conhecida como Peste Negra, que foi disseminada tanto na Europa quanto na Ásia por causa da guerra entre os dois; a invasão da Rússia por Napoleão, em 1812, que foi dissuadida não apenas por causa do inverno, mas também por causa do tifo, uma doença transmitida por piolhos corporais, que dizimou 80 mil soldados apenas no primeiro mês da campanha de Napoleão; e a Primeira Guerra Mundial e a pandemia de gripe espanhola de 1918, que infectou ⅓ do planeta e foi a mais mortal da história: pelo menos 50 milhões de mortos, enquanto a guerra tirou a vida de aproximadamente 20 milhões. Mas as guerras tendem a ofuscar as pandemias. Como você vê a confluência desses eventos no tempo presente com a guerra na Ucrânia?

É absolutamente lógico que as pessoas estejam em guerra. A condição de vida, de vida normal, já não existe mais. As pessoas estão vivendo em péssimas condições. Todo mundo sabe que, em última instância, o fim da Primeira Guerra Mundial foi provocado pela gripe espanhola, quando todos os soldados, de ambos os lados, ficaram muito doentes. Esse foi um dos mais importantes ímpetos para deter esta guerra. Creio que a pandemia da Covid-19 deu às pessoas mais dois anos antes da guerra na Ucrânia. Se não fosse pela pandemia, eu acho que Putin teria começado mais cedo. Mas, com esse novo vírus, ele também teve de esperar. Ele também não sabia quais consequências essa doença poderia trazer. A partir do momento em que entendemos que essa doença não era mais tão perigosa, acho que isso ofereceu uma luz verde para esse monstro. A meu ver, a Covid foi uma pequena pausa antes da guerra. Outra coisa que tenho em minha mente é que tudo isso se trata de um jogo com a humanidade. O vírus se tornou uma forma de ver o que acontecerá a seguir. Ele mostra que podemos nos organizar, encontrar soluções e sobreviver. Alguma explicação política pode ser mais inteligente e até mais racional, mas eu tenho esse tipo de sentimento.

Parece quase não haver espaço para discutir uma pandemia quando estamos em meio a assassinatos, ocupações de países e enfrentando uma enorme desestabilização sociopolítica. Você acredita que a Guerra na Ucrânia é um marco histórico, que também representa o fim da pandemia? Ou acredita que, após o fim do conflito, ainda estaremos vivenciando a pandemia do Covid-19 e preocupados com a propagação da doença?

É tão difícil falar sobre o que acontecerá amanhã. Antes da guerra, é claro, nós estávamos falando sobre isso. Ao discutir, aqui na Suíça, com meus colegas de outros países, pensávamos que uma nova variante de vírus ou bactéria será absolutamente inevitável. Ela virá. Com todas essas variantes de vírus, é absolutamente claro que elas se transformarão e aparecerão em novas formas. Antes tínhamos as gripes, a AIDS... A humanidade pôde reagir a elas com alguma capacidade e, na verdade, elas não se demonstraram tão perigosas. É claro que se trata de doenças ruins, mas no final das contas não tão nefastas. Certamente teremos novas variantes de vírus e bactérias e, com isso, novos desafios para a humanidade. Isso é uma coisa, e a guerra é outra, mas, de certa forma, uma usa a outra.

Gostaríamos de falar sobre os processos de desconstrução que são observáveis nesta guerra. Tanto a tentativa russa de desconstruir a identidade ucraniana, que talvez possa ser lida como um processo exógeno, quanto a própria ruptura de identidade endógena do regime russo, que esta guerra desencadeia em seus cidadãos. Putin se recusa a reconhecer a soberania da Ucrânia e afirma que o país não tem direito histórico a um Estado. Embora a história compartilhada da Rússia e da Ucrânia seja inegável, o nacionalismo ucraniano remonta a mais de um século antes do início da União Soviética, e Kyiv foi fundada centenas de anos antes de Moscou. Alguns chamaram essa recusa de ver da parte da Rússia como uma espécie de amnésia histórica e os esforços para eliminar o próprio conceito de Ucrânia. Como você vê a divisão entre cultura, identidade e linguística da população ucraniana em relação à russa, e de que forma essa divisão se manifesta hoje?

É uma questão muito complicada. Podemos falar longamente sobre isso e em direções muito diferentes. Todo este mito sobre a extensão territorial da cultura russa e a posição da Ucrânia como parte dela foi preparado por muitos anos no imaginário da maioria das pessoas na Rússia. Eles estão certos de que a Ucrânia absolutamente não é um Estado nacional. Não sei como eles construíram essa ideia na cabeça de tantos cidadãos russos, provavelmente apenas pessoas mortas podem nos ajudar a entender. E esta é uma história muito longa. Ao longo de toda a história da Rússia, eles tiveram problemas com o território da Ucrânia. Eles começaram a dizer: “Ah, esse é o começo de nossa história”. Mas esse não é o caso; não está no território do atual Estado russo. Dá para imaginar se a França começasse a dizer: “Nosso passado foi tão grandioso que precisamos retomar a Itália, a Alemanha etc.”? Não, é absolutamente impossível. As pessoas na Rússia estão de alguma forma certas de que este foi o início do grande império russo, e que a Ucrânia não existia. Os historiadores ucranianos têm sido ativos neste debate. Mas somente após a guerra eles receberam a possibilidade de falar abertamente, antes havia somente algumas publicações sobre isso. Trata-se de um discurso dominado pela Rússia, o qual será muito difícil de desconstruir.

Você acha que, enquanto a Rússia tenta desconstruir a Ucrânia, está causando involuntariamente sua própria fragmentação e desconstrução, como podemos ver com as massivas manifestações internas e a guerra que Putin está travando contra seus próprios cidadãos dissidentes?

Se a Rússia não vencer, caso a Europa ajude a Ucrânia e, assim, nós sobrevivamos como um Estado independente, podemos imaginar que esta guerra seria o início da desconstrução do império russo. Por outro lado, se a Ucrânia se tornar vítima desta guerra, e a Rússia restaurar sua fronteira dos tempos do início da União Soviética, então todo o território ucraniano se tornará um grande gulag – um campo de concentração da União Soviética.

A Europa, entretanto, não ajuda. É absolutamente uma repetição dos 30 anos com Hitler, quando a Europa concedeu pequenos pedaços de países e pensou: “Tudo bem, provavelmente é suficiente para eles; provavelmente é o bastante para apaziguar este regime nazista”. Só que, para Putin, é outro tipo de regime, trata-se da reconstrução da Grande Rússia. O nome da União Soviética é apenas outro nome do Império Russo. Não posso dizer o que o amanhã nos reserva, mas a história infelizmente nos mostra que pode ser a Ucrânia a vítima.


Você é uma pessoa cuja história faz a ponte entre os dois países – Ucrânia e Rússia. Para citar alguns pontos, você estudou em São Petersburgo e recebeu seu doutorado em História da Arte do Instituto Estatal de Estudos de Arte em Moscou e, por outro lado, chefiou o Departamento de Arte Moderna Europeia na Galeria Nacional de Arte de Lviv e lecionou na Universidade Nacional Ivan Franko, em Lviv. Se pudermos falar sobre suas experiências pessoais, quais são suas percepções e sentimentos em relação ao conflito atual?

Eu nasci na União Soviética. Essa foi também uma das primeiras identidades que foram destruídas na época da Perestroika. Eu tinha apenas 20 anos de idade, essa foi a primeira grande desconstrução de mim mesma. E, mais tarde, ir estudar na Rússia foi como uma escolha para mim. Quando comecei meu curso em São Petersburgo, recebi todo esse conhecimento sobre a grande cultura russa, sua arte e literatura. E era uma dúvida para mim: “O que devo fazer para meu desenvolvimento pessoal como profissional? Devo começar a fazer pesquisas sobre os grandes artistas russos, ou posso fazer minha pesquisa sobre artistas absolutamente esquecidos e desconhecidos, que eram ucranianos?”. E eu, como ucraniana, disse a mim mesma: "Ok, vou tentar fazer algo que é absolutamente ignorado”. E assim escolhi Alexis Gritchenko como tema de minha dissertação, um artista ucraniano que estava ativo em Moscou no período de vanguarda.

Nos anos 1990, a Rússia não estava tão forte e estável, logo após toda a destruição decorrente do fim da União Soviética – havia uma espécie de nostalgia. Mas eu gostava de meus colegas de curso, de meus amigos em Moscou, e havia uma comunicação normal e pacífica. E quando eles mencionavam a grande avant-garde russa, eu contestava: “Ok, mas estes artistas nasceram na Ucrânia, cresceram e receberam sua primeira educação artística lá...”. Mas para eles era tudo sobre o grande império russo. E eu avaliava que precisávamos de um pouco mais de tempo para construir nossa história ucraniana, nossa história da arte, a história de nossa literatura. Agora, tenho esta pergunta: quem é mais responsável, os intelectuais – que deram todas essas ideias distorcidas em suas publicações, em seus campos de influência, em suas discussões – ou os militares estúpidos – que pegaram essa ideia e a colocaram em prática? Quem é o culpado?

Além da questão da responsabilidade, a guerra está destruindo material e espacialmente a Ucrânia, o que desencadeou um dos maiores êxodos da história dentro de um curto período de tempo. Sob essa luz, gostaríamos de discutir tanto a evacuação das pessoas quanto a dos tesouros culturais ucranianos, tais como as obras de arte. Talvez, partirmos do primeiro: centenas de milhares de pessoas estão escapando da Ucrânia para o oeste, buscando segurança em países vizinhos como Polônia, Hungria, Moldávia e outros países europeus. Como você vê esse movimento, uma vez terminada a ocupação da Ucrânia, em termos de reconstrução da unidade de um povo e sua identificação com um lugar?

Isso é uma coisa que você pode ver em nossa história repetidas vezes. Tivemos tantos movimentos e tantos êxodos que deslocaram pessoas de um país para outro. Há sempre a pergunta: o que acontece quando as pessoas mais instruídas deixam o país? O que acontece com a metrópole? As pessoas com melhor formação estão saindo deste país agora mesmo. Isso já ocorria antes da guerra, é claro, porque os jovens intelectuais buscavam obter uma boa educação na Europa ou nos Estados Unidos. Este processo começou antes da guerra. Durante a guerra, no entanto, esse número cresceu vertiginosamente e milhares de pessoas partiram.

Podemos comparar isso com a história da Rússia: quantos deixaram a Rússia após a Revolução de Outubro? Muitos! Mas, parece-me que a base deste território confere novas forças para o aparecimento de novas pessoas, muito inteligentes e perspicazes. A Alemanha, por exemplo, após a destruição absoluta, se reconstruiu rapidamente. Para mim, não é a questão de que tantas pessoas deixaram a Ucrânia, é de se a Ucrânia permanecerá como um Estado independente. Se a Rússia persistir com este ditador, o perigo, para nossa civilização, também perdurará. Não sei qual preço teremos de pagar, nem qual será a solução, mas, para mim, é absolutamente claro que a Europa e a Ucrânia conseguirão se reconstruir sozinhas. As pessoas que estão ficando na Ucrânia, que estão lutando contra Putin, são de uma nova geração, uma geração muito inteligente de pessoas incríveis e que não querem deixar a Ucrânia. Eles preferem ser mortos, mas tendo lutado, a fugir do país.


As guerras, além da violência física, também infligem a violência cultural. Como você vê os ataques da Rússia à herança cultural ucraniana? E qual é a importância para você, como historiadora de arte e curadora, de que o resto do mundo se familiarize e valorize mais com a cultura e a arte ucraniana?

Foi uma pena que as pessoas só tenham começado a se interessar pela cultura ucraniana depois que esta começou a ser ameaçada. Estou em contato com um colega historiador de Kiev, e sei o que os trabalhadores do museu estão fazendo por nossa coleção de arte. Trata-se de uma coleção muito rica construída em cima dessa herança comum que nós temos – não só ucraniana, mas também polonesa. O trabalho dos historiadores está ajudando a preservação da obra, embalando-as com diferentes materiais, cobrindo-as ou colocando-as nas cavernas, sob o solo... Também sei que alguma parte da coleção foi digitalizada – porém não todas as coleções, e uma obra de arte digitalizada não é a mesma que a obra original – mas ainda assim. Não sei o que vai acontecer com todas estas obras de arte. Em relação à arquitetura, infelizmente, alguns monumentos estão sendo destruídos. Em Lviv, minha cidade, as pessoas adoram as suas obras de arte, e estão protegendo os vitrais, as esculturas, as estátuas, as construções... Quando foi possível colocá-las em um bunker ou em um porão, eles o fizeram. Mas, se os russos vierem, acho que será como com a Crimeia, quando eles levaram as melhores obras dos museus da Crimeia para Moscou. Eles as levarão. Eu, no entanto, prefiro acreditar que eles não as destruiriam (embora tenham destruído algumas artes nacionalistas na invasão da Crimeia).

Você sente que essa circunstância coloca mais responsabilidade em sua profissão, como historiadora da arte? Devido ao seu envolvimento e todo o seu conhecimento tanto com a história quanto com a arte ucraniana, isso pode representar agora um fardo ainda maior em seu trabalho. Podemos dizer que, de alguma forma, você é uma das que carregam o peso de uma cultura.

Eu posso observar algumas tendências. Antes, eu já havia recebido convites para dar palestras sobre a avant-garde ucraniana na Europa, em Tóquio, Paris e Irã, por exemplo. Mas a arte ucraniana estava esquecida. Eu, no entanto, prefiro ser uma historiadora da arte absolutamente desconhecida.

Naturalmente, é absolutamente necessário conhecer mais sobre esta pequena cultura e, portanto, difundir o conhecimento sobre ela. Em minhas apresentações, digo que, para a maioria das pessoas, não é tão confortável dedicar tempo para compreender uma pequena cultura de 40 milhões – seja ela ucraniana, bielorrussa ou georgiana. É tudo russo. Por que é tão difícil começar a abrir-se para algo novo? Temos de dar liberdade ou alguma independência à região basca na Espanha, ou esta é pequena demais? Qual é a medida que possamos conceber para separar uma determinada cultura? Quando falamos da Suíça, por exemplo, que é muito, muito pequena e não é conformada por uma única cultura. Lá, temos a francesa, a alemã e a italiana, as quais estão juntas. No entanto, ninguém é capaz de questionar e dizer: “Ah, essa aqui não existe”.

Conforme a violência e as crises humanitárias se desenrolam em tempo real, o resto do mundo assiste, a partir de suas casas, em TVs e smartphones. Que papéis os cidadãos de outros países podem desempenhar no apoio ao povo e à cultura ucraniana?

O apoio é enorme. Posso dizer que o apoio dos cidadãos comuns é mais eficaz do que a assistência dada pelos governos de outros país. Ontem, em Zurique, houve uma manifestação com cerca de 40 mil pessoas presentes. Ontem eu estive na Basileia, onde havia inúmeras pessoas protestando também. E sei que o mesmo aconteceu em Genebra, em Zurique e em outras pequenas cidades da Suíça.

A ideia e a vontade de ajudar são enormes. Isso é também um reflexo da quantidade de ucranianos que estão na Europa e na América trabalhando. As pessoas que estão se mobilizando são pessoas normais e bem-educadas, trabalhando para ajudar os ucranianos, coletando dinheiro... É agora um grande drama a possibilidade de a Ucrânia não existir mais; seria um grande trauma. Os países europeus também estão sob defesa. Este apagamento não pode ser uma possibilidade. Putin não pode destruir essa experiência, essa memória e potencial dos 30 anos de existência da Ucrânia e de sua nova geração que já está ativa. 

Olhando de uma perspectiva global, essa guerra está reconfigurando a geopolítica a ponto de definir grande parte do futuro do mundo. Países historicamente neutros como Suécia e Suíça se posicionaram, vários países europeus estão fornecendo ajuda de diferentes formas, a influência da OTAN e da ONU nos países do Leste está crescendo, países como China e Irã se abstiveram da votação da ONU, mas não se posicionaram contra, entre outros eventos. Quão transformadora você acha que essa guerra será? Qual é o amanhã que ela está inaugurando?

Sim, poderia ser muito bonito. Mas, neste momento, não posso dizer nada sobre o que podemos imaginar para amanhã. Tenho um desejo muito grande e espero que algo aconteça na Rússia, que esse monstro possa ser destruído. Não posso, no entanto, excluir a possibilidade de que a Ucrânia possa ser destruída. Isto seria uma tragédia muito grande, para mim pessoalmente, para meus amigos próximos, para a minha geração. Seria uma tragédia absoluta para toda a humanidade, para a Europa. No entanto, hoje, neste momento, simplesmente não consigo saber como vejo nosso amanhã e depois de amanhã.