05/02/2018 - São Paulo - O ENTRE foi convidado para colaborar com 12 entrevistas para a publicação da exposição "Muros de Ar" do Pavilhão do Brasil na XVI Bienal de Arquitetura de Veneza em 2018, relizada pelos curadores Gabriel Kozlowski, Laura González Fierro, Marcelo Maia Rosa e Sol Camacho. As entrevistas publicadas em versão reduzida para a Bienal encontram-se na íntegra no site do ENTRE.
Carla Caffé formou-se em arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) no início da década de 1990. Trabalha nos campos da direção de arte e do desenho. É professora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Associação Escola da Cidade (AEC) e em oficinas do SESC Pompéia. Carla pesquisa as práticas do desenho, da cartografia e do mapeamento enquanto forma de representação da paisagem urbana. Eliane Caffé formou-se em psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 1988. Estudou cinema em Cuba e "Estética das Artes" na Espanha. Diretora e roteirista, estreou em longas-metragens com Kenoma(1997), exibido na 56a Bienal de Veneza. A parceria entre as irmãs Caffé gerou projetos como o filme "Era o Hotel Cambridge" (2016), que tem como locação um edifício ocupado por pelo movimento Frente de Luta por Moradia (FML) de São Paulo. O filme dirigido por Eliane Caffé contou com a participação dos habitantes do edifício, que atuam e confundem-se com atores profissionais; e com a Direção de Arte de Carla Caffé em parceria com um grupo de alunos da Escola da Cidade. [Entrevista realizada por Marcelo Maia/ Fotografia por Murilo Salazar]
Eliane Caffé: As principais e estruturais são a língua, o choque cultural e o trabalho.
Carla Caffé: A questão da moradia lida com hábitos íntimos e, muitas vezes, esse choque cultural vem de coisas básicas. No processo do filme tivemos uma experiência de conflito cultural muito impactante para mim. Algo comum para a família brasileira como o filho dormir no mesmo quarto que os pais, é inadmissível para os congoleses. Nesse caso, foi difícil de identificar que esse era o problema. Essas diferenças aparecem de uma forma muito violenta quando colocadas dentro de um universo de zonas de conflito.
Eliane Caffé: Ouvimos muito sobre esse assunto dos refugiados e dos migrantes no mundo inteiro. Esse debate acontece geralmente dentro de segmentos artísticos e de pesquisa que são atrelados a classe média. Quando vivemos o problema na pele, vemos que estamos longe de conseguir traduzir o que estamos enfrentando hoje em dia. É muito forte e pesado, não temos a noção. Quando falamos em choque cultural, imaginamos coisas que conseguimos tolerar e conviver, mas na prática é algo muito duro, cruel e difícil. Hoje mesmo estávamos falando sobre um problema de uma das migrantes, mas há uma seleção do que eles nos contam. Não sabemos onde está a fronteira do que é permitido falar, pois não dominamos o código da cultura deles.
A Carla comentou de como as crianças moram junto de seus pais. Na luta pelo acesso à moradia busca-se ao menos a casa mínima, mas a ideia de mínimo pode divergir muito, não é?
Carla Caffé: Diverge demais. E não se sabe por antecedência. Demorou até descobrirmos que a questão era um hábito nosso, tão simples, mas que funciona de maneira totalmente diferente para eles.
Eliane Caffé: O que a Carla está falando é muito importante porque, apesar do movimento ter uma natureza transformadora, dentro dele mesmo o nível de preconceito ainda é muito grande. O migrante traz para nós a questão do preconceito de uma forma que não imaginávamos ter. Isso se manifesta na hora que estamos no corpo a corpo com ele.
Carla Caffé: A presença física.
Eliane Caffé: O corpo das pessoas. O grau de doença que existe nesses corpos e o enorme sofrimento.
Eliane Caffé: A cicatriz pressupõe que já houve uma cura. Nesse caso é uma ferida aberta. Hoje estamos muito sensíveis porque tivemos notícias de algumas mulheres refugiadas de lá que estão passando por momentos difíceis. Quando tiramos o problema delas do plano individual, percebemos que isso é o que a grande maioria está passando. São pessoas que estão vulneráveis e no desespero acabam se envolvendo com o tráfico de drogas. Isso acaba reforçando um estigma sobre os refugiados.
Carla Caffé: Quando falamos em refugiado imaginamos uma abstração, enquanto que ele pode ser haitiano, congolês, palestino ou de outras nacionalidades. São universos muito distintos, o que faz com que exista uma segregação grande entre eles, assim como entre nós. É difícil falar sobre o refúgio porque ele é essencialmente complexo e diverso, mas acabamos colocando todos em uma única categoria. Ao lidar diretamente com eles, isso acaba gerando uma maior dificuldade.
Eliane Caffé: Talvez isso seja um dos tijolos que vão construindo esse muro. Nós precisamos perguntar quem o constrói. Testemunhamos as experiências que acontecem em consequência desse muro, mas pouca gente fala do que ele é feito e da sua manifestação sistêmica. Quando um muro finalmente parece se desfazer, vemos que tem um outro atrás dele. O nosso sistema está chegando em um nível de crueldade muito grande, pois tudo gira em torno do capital e das formas de exploração. Estávamos até falando que a palavra nem é mais explorar e sim expropriar. A exploração hoje está em todos os níveis: redes sociais, bienais, festivais, universidades etc. Tudo gira em torno desse sistema e o que significa continuar a reproduzi-lo? A consequência é enriquecer poucos e lançar muitos na miséria. Por trás das guerras, que provocam esses refúgios, existem seres humanos que as articulam. Se acharmos que a guerra faz parte da natureza humana, vamos nos acostumar com a fabricação desses muros.
Carla Caffé: A ideia é justamente essa: os muros são essas bolhas que a gente vive. As redes sociais também vão construindo muros e vamos ficando ensimesmados, discutindo questões somente entre nossos grupos. Enquanto isso esquecemos a presença do corpo. Uma coisa que aprendi com o Cambridge é que o corpo faz esse deslocamento das zonas de conforto. Quando ultrapassamos esses muros é que de fato conseguimos perceber o outro. Entendemos que aquele refugiado tem uma origem e que, portanto, tem questões distintas de nós e de outros refugiados com relação a sociabilidade, a cultura e a língua por exemplo.
Eliane Caffé: O problema dele é muito similar ao problema do trabalhador de baixa renda. Essa luta por moradia é provocada pelos mesmos agentes: a especulação imobiliária, as guerras beligerantes, entre outros.
Eliane Caffé: Completamente. O centro da cidade por exemplo: de dia é uma coisa e a noite é outra. Aquela rua cheia de comércio e muito movimentada, depois das dezoito horas se transforma em uma feira de celulares roubados. No espaço de vinte e quatro horas vemos essas configurações mudando. Tem milhares de exemplos, um deles é o carnaval. Vocês viram a quantidade de gente na rua esse ano? Foi a primeira vez que os blocos de São Paulo conseguiram reunir um número maior de pessoas do que os do Rio de Janeiro. Por um lado é incrível o sentimento de alegria do carnaval. Nos sentimos no meio dessa catarse carnavalesca, vemos os corpos em uma relação de erotização que às vezes é linda, mas às vezes violenta.
Carla Caffé: É uma loucura ver o carnaval e essa reação que o brasileiro tem com ele. Perdemos todas as fronteiras, todos os muros. Saímos, rodamos e nos expomos de uma maneira que não acontece durante o ano inteiro.
Eliane Caffé: Paralelamente eu soube de um bloco que é pró tortura, que homenageia torturadores. Também vemos a barbárie representada em uma festa carnavalesca. Inclusive se pensarmos na história do carnaval ele surge com essa função. Na idade média esses eram os dias em que as pessoas saíam dos muros. Depois fomos domesticando essa festa que adquiriu um cunho comercial. Agora, em pleno século XXI, parece que o carnaval está recuperando essa força catártica que ele teve em uma época de muita opressão.
Carla Caffé: Você vê isso devido ao espaço público. Mudamos muito depois de junho de 2013, quando entendemos o que é uma presença corporal no espaço público e a força política que isso tem. Existem momentos em que isso fica muito claro e momentos que não. Os estudantes secundaristas perceberam que é possível fazer política na rua. O espaço público é muito político e transformador. Estamos entendendo a importância disso via carnaval, mas serve também para outras lutas.
Eliane Caffé: É incrível onde aparece o sinal. As estatísticas, por exemplo, são uma loucura. Em São Paulo 27% da população possui carro e todo o resto usa transporte público. Apesar disso, quando saímos nas ruas vemos que mais de 90% do espaço da rua é para circulação dos privados. Aí está a resposta para a sua pergunta, pois a coisa está inscrita no mapa concreto da cidade e nos acostumamos com essa desigualdade. O fato de nos adaptarmos a isso é a verdadeira barbárie.
Eliane Caffé: Onde percebemos claramente uma mudança nessa subjetividade, principalmente em relação aos africanos, é o entendimento deles sobre o que é uma ação coletiva. Em muitos de seus vocabulários não há registro de "movimento social". Nessa cultura não existe a referência de agrupar o coletivo para lutar por direitos. Percebemos essa dificuldade ao fazermos o trabalho de base com os migrantes lá na ocupação. Quando se reúnem em uma roda de conversa ninguém fala, mas quando esta termina vemos surgir as comunicações paralelas. Percebemos que eles têm medo de se expor e que não tem a crença de que no coletivo podemos resolver coisas que não somos capazes no individual.
Carla Caffé: Também existe algo que eu aprendi no filme, a questão do lúdico. São pessoas que estão destituídas do seu direito à moradia e que vivem em zonas de conflito. Apesar disso, elas têm uma afetividade e um universo lúdico muito forte. Para a execução do filme trabalhamos na linha do lúdico, porque ultrapassava inclusive a barreira das línguas. Era através de jogos lúdicos que o coletivo se entendia.
Eliane Caffé: É verdade, o lúdico pode ser muito revolucionário dependendo de como o direcionamos. Um exemplo disso é o fato de crianças, de diferentes nacionalidades, não terem nenhuma dificuldade em brincarem juntas.
Carla Caffé: O filme “Era o Hotel Cambridge” foi um case com relação a isso porque conseguiu, através do cinema - de uma linguagem poética e do lúdico - criar um entendimento entre várias nacionalidades. O filme é falado em seis línguas. Outro case muito interessante é a relação entre arquitetura e cinema, pensando essa multidisciplinaridade como algo fértil. Em geral existe a tendência de separar as disciplinas, mas o Cambridge conseguiu trabalhar com ambas. A cenografia do filme foi concebida para ser um melhoramento das instalações do edifício. O que era para ser o cenário de uma Lan House, por exemplo, transformou-se na biblioteca do Cambridge.
Eliane Caffé: Já que o roteiro pedia para que construíssemos, a ideia da Carla foi aproveitar essa oportunidade para transformar o lugar conforme as necessidades deles. É nesse momento que começa a poderosa contrapartida, é através dela que conseguimos chegar naquele território. Ao invés de apenas fazer uma pesquisa e retirar algo desse lugar, estabelecemos uma troca. Ao mesmo tempo que pedimos, também oferecemos. Então começa a existir o vínculo afetivo de ambas as partes, o reconhecimento de que elas precisam uma da outra para acontecer. Essa reciprocidade é o trânsito que falamos. Queremos lembrar que esses segmentos que tem dinheiro – a exemplo da Bienal de Veneza, podem fazer muitas coisas nessas zonas de conflito, onde há uma carência enorme. Essa verba dada pelo patrocinador pode ser canalizada para esse viés, como fizemos na experiência de construir os mapas. Vocês podiam ir pegar as informações e registrar, mas quiseram ir em campo. Foi incrível o retorno que os refugiados nos deram, pois falaram que, mesmo estando há dois ou três anos lá, nunca tinham contado coisas que revelaram naquela roda. O fato de eles se ouvirem também fez com que se encontrassem, virassem amigos. A interatividade do corpo, ou melhor a troca presencial é muito poderosa, pois ela realmente modifica muito as relações.
Eliane Caffé: Sabe porquê? Quando estamos presentes, as nossas ferramentas são os nossos sentidos. Eles nos ajudam a obter conhecimento, pois é a partir deles que conseguimos interpretar certas situações. As vezes lemos sobre um assunto, mas quando vamos para a prática captamos outros níveis do problema. Podemos mobilizar partes do nosso instrumento perceptivo assistindo a filmes ou lendo livros, mas a presença física ainda é insubstituível. Por conta de todas essas máquinas, estamos aprendendo a viver sem exercitar essas ferramentas do corpo humano.
Carla Caffé: Me marcou muito quando tivemos a ideia de fazer oficinas no Cambridge - um sistema colaborativo ou melhor, um coletivo. Nos primeiros chamamentos não vieram adultos, somente crianças. Elas foram as embaixadoras dessa ação trazendo os adultos aos poucos para as oficinas de dramaturgia. Eu jamais poderia pensar, refletir ou imaginar esse método de trabalho, se não provocando presencialmente.
Eliane Caffé: As crianças sempre se atiram mais, são mais ousadas. Quando chega um elemento estranho elas são as primeiras a se aproximar. Depois ela leva o assunto para o interior da casa e a família vai se abrindo para nós. Esse é um exemplo de métodos que vão surgindo.
Eliane Caffé: Hoje, temos a tendência de ver mais do que um espaço de liberdade. A questão problemática dos guetos está cada vez mais presente. Existem bairros inteiros que se transfiguraram. A Liberdade que era um bairro japonês, virou palestino. Os palestinos têm um jeito de fazer negócios, têm um jeito de viver. Já no Brás ou no Bresser são os angolanos.
Carla Caffé: Bom Retiro, os Bolivianos.
Eliane Caffé: Não existe uma política pública para agregar essas pessoas à sociedade. Com isso a tendência é que eles se isolem em guetos, procurando os seus semelhantes. Criam assim um sistema fechado de códigos que alimenta o preconceito. Eu diria que esse lado multicultural e interdisciplinar está conceitualizado, mas não predomina na prática. Os movimentos por moradia talvez sejam uma forma de encarar essa problemática de frente, mas estamos longe de resolvê-la. É impossível fazer qualquer coisa efetiva no sentido de transfigurar (e pode ser em países da Europa ou outros países desenvolvidos), se não mudarmos a forma sistêmica de como nos organizamos no mundo ocidental. Enquanto estivermos marcados pela presença hegemônica do capital, do mercado que atravessa tudo, não será possível. Um exemplo concreto para isso é que chegando aqui, em poucos dias, os migrantes viram escravos das fábricas no Bom Retiro. Outro caso que estamos vendo na ocupação é a contratação por empreiteiras para fazer colocação de mármore e não recebem por isso. A grande maioria está sendo escravizada. O pior é que eles não podem brigar por seus direitos porque não possuem documento, só um protocolo. Não podem sequer acionar a polícia. Se eles fogem desse sistema são automaticamente cooptados pelo tráfico. O que estou querendo dizer com isso é que não conseguimos implementar uma política de entrosamento se o problema fundamental - de sobrevivência da fome - não estiver solucionado. Enquanto esse sistema continuar existindo, tudo o que discutirmos (através de filmes, bienais de arquitetura, livros e outros meios) no sentido de fazer um mundo melhor, será enxugar gelo. Não vamos sair do lugar se não começarmos a experimentar novas formas de exercer a nossa força política. Às vezes parece um discurso meio fatalista, mas é pior quando a gente não olha para essas questões e não procura soluções para o problema.
Carla Caffé: Um refugiado já é o resultado de uma relação de exploração pela exploração. Ele saiu de seu país por uma questão do sistema. Essa coisa do brasileiro ser generoso e aberto às novas culturas não é verdade. Essa mestiçagem, que é o carimbo da nossa sociedade, é muito preconceituosa e inclusive perigosa.
Eliane Caffé: Quando começamos a constatar o problema na pele, ficamos revoltados. Como é que o sistema se protege disso? Ele vai criando máscaras, vai fazendo com que consigamos aceitar essas circunstâncias e as vejamos como algo normal. Um exemplo disso é que todo mundo critica as políticas do estado, mas ninguém fala das empresas. Nós – classe média que faz os festivais, bienais, etc. – nascemos nesse contexto e não percebemos que pra fazer estas coisas o sistema explora e gera lucro.
Eliane Caffé: Não estamos falando de Brasil, estamos falando da atualidade. 82% de toda a riqueza mundial gerada em 2017 ficou nas mãos do 1% mais rico da população. É uma coisa inimaginável e precisamos colocar claridade sobre isso.