06/02/2018 - São Paulo - O ENTRE foi convidado para colaborar com 12 entrevistas para a publicação da exposição "Muros de Ar" do Pavilhão do Brasil na XVI Bienal de Arquitetura de Veneza em 2018, relizada pelos curadores Gabriel Kozlowski, Laura González Fierro, Marcelo Maia Rosa e Sol Camacho. As entrevistas publicadas em versão reduzida para a Bienal encontram-se na íntegra no site do ENTRE.
Gilson Rodrigues (Bahia,1984) é líder comunitário em Paraisópolis, favela na zona sul de São Paulo. Foi presidente da União dos Moradores de Paraisópolis e um dos implementadores do Instituto Escola do Povo (IEP); É protagonista na condução do projeto Nova Paraisópolis, criado em 1994, que busca qualificar a vida na comunidade por meio de diversas iniciativas locais. [Entrevista realizada por Sol Camacho / Fotografia por Murilo Salazar]
Gilson - Acho que a principal fronteira que separa Paraisópolis do Brasil e do mundo é a desigualdade social. Paraisópolis nasceu em um espaço que veio a se tornar um dos mais ricos do Brasil, mas que a princípio ninguém imaginava o que seria. Nordestinos que vieram para ajudar a construir a São Paulo que existe hoje ocuparam essas e outras áreas. Paraisópolis não era diferente de outras comunidades que surgiram nesse processo, mas a partir da ocupação desse espaço, foram trazidos para o bairro construções como o Palácio do Governo, o Estádio do Morumbi e o Hospital Albert Einstein.
Depois, pela valorização da região com a chegada dessas obras, ricos vieram morar no bairro. Como sempre, onde há um bolsão de riqueza, há também um bolsão de pobreza. O governo deixou a favela crescer de maneira desordenada na esperança de um dia remover essas pessoas. Nós não temos orgulho de ser a maior favela, queremos ser o maior bairro. Quanto mais se prega a divisão entre nosso vizinho rico - o Morumbi - e Paraisópolis, mais ficamos divididos.
Acho que o Morumbi ganhou uma infraestrutura que Paraisópolis não ganhou (está começando a ganhar agora). Minha mãe trabalhou em casa de família a vida inteira, e lá eu era tratado como um filho. Alguns acessos às coisas que os filhos da “madame” tinham, eu também tive. Havia, dentro daquele núcleo familiar, um acesso a oportunidades. Dando oportunidade para a minha família, o muro se rompeu. O que mudou recentemente em Paraisópolis é que essas famílias ricas que sempre moraram no Morumbi e exploraram a força de trabalho da favela começaram a enxergar que nós precisamos de oportunidade para podermos ser iguais. Hoje Paraisópolis tem médicos, administradores, pedagogos...
Eu acredito que esses muros – entre a cidade, Paraisópolis e o Morumbi – têm se quebrado nos últimos anos à medida que nós nos posicionamos como agentes da nossa própria transformação. O que divide hoje um cara rico de Paraisópolis e um cara rico do Morumbi? Acredito que quando quebrarmos os muros nas nossas cabeças e criarmos oportunidades para essa população avançar, nosso país vai avançar cada vez mais. Tem uma música de um enredo de escola de samba chamado “Primeiro era o Morumbi”, que fala: “A gente vai olhar, a gente vai sorrir / Comunidade e condomínio vão se descobrir / As mãos vão se tocar, os medos vão cair / Se cada um cair em si.” Nós convivemos todos os dias no bairro. O que vai nos unir (e já nos une) não é mais o dinheiro, e sim o conhecimento, o acesso à arte e à cultura. Esses muros tendem a diminuir se as pessoas enxergarem seu potencial. Então, a Nova Paraisópolis surgiu para integrar o bairro à cidade e ao mundo. Decidimos ocupar todos os espaços em que pudéssemos falar sobre Paraisópolis. Foi assim que o programa nasceu e esses muros começaram a ser rompidos.
Gilson - A principal barreira que se tem é a do Estado. Paraisópolis tem uma situação especial porque o governo estabeleceu que um dia seria tudo removido. A ideia era oprimir mais e investir menos, assim a violência aumentaria, as pessoas não aguentariam mais e o Estado viria com uma reintegração de posse para retirar as pessoas. Porém, a comunidade foi se organizando, resistindo.
Em poucos bairros no Brasil é possível definir onde o mesmo começa e termina. Em Paraisópolis você atravessa a rua e sabe que é o Morumbi, especialmente por causa das mansões. Existe a separação, mas não é um muro sem acesso ao outro lado. Quando você fala em “muro”, sinto que não posso atravessá-lo, mas nós o atravessamos, todos os dias. Nesse sentido, tudo que as pessoas em Paraisópolis não queriam era a construção de uma avenida cruzando a favela. Na época do prefeito Maluf (1993-1996) existia o plano de uma avenida que se chamaria Avenida de Itapaúna, tendo como traçado a Rua Pasquale Gallupi. Nós queríamos uma avenida, mas preferíamos que a mesma fosse mais para o canto. Então, fomos empurrando o traçado para onde havia mais espaço e geraria remoção de menos pessoas, o que resultou na Avenida Hebe Camargo de hoje. Existia a preocupação da população de que a avenida não fosse uma cicatriz dentro do bairro, demonstrando nossa vontade de integração. De um lado da Avenida Hebe Camargo temos Paraisópolis, e do outro lado, podemos ter Paraisópolis também. Ela ainda pode ter um sentido sem ser o de separação.
Gilson - Eu acho que uma cidade rica como São Paulo ainda ter situações como a de Paraisópolis ou a do Córrego do Antonico e a do Grotão afeta o desenvolvimento humano. No conjunto de ações para se considerar uma cidade sustentável, economicamente ativa e com um IDH melhor, situações como essas atrapalham. Fora isso, uma questão específica: como o Morumbi, que prega uma outra cultura e outro acesso à educação, lida com Paraisópolis? Hoje o Morumbi sofre com a questão do Pancadão: filhos do Morumbi vêm à Paraisópolis para dançar, o que era antes algo exclusivo das favelas. Isso tem impacto na região e a omissão do governo em deixar isso acontecer de forma desorganizada reverbera na cidade. E, posteriormente, isso passou a acontecer em outros bairros também. Minha sensação é, então, de que as pessoas olham para as favelas mais famosas, como Paraisópolis e Heliópolis, e isso acaba repercutindo, de bom ou de ruim. Nós temos uma missão de buscar sermos exemplo para outras comunidades.
Gilson - Quando fizemos o Paraisópolis das Artes, eu falava que nosso objetivo com o circuito cultural era transformar a visão das pessoas, que passariam a olhar a favela e pensar em coisas boas. Pensar em projetos como o Gaudí, o Berbela, a Orquestra Filarmônica de Paraisópolis, e não em violência, marginalidade ou pobreza. Falar em muros hoje nos atrapalha, principalmente falar daqueles que não existem. A principal ferramenta para divulgar nossas ideias é através de ações culturais, atraindo pessoas que imaginam que exista um muro a atravessar e, em contrapartida, mostrando para elas que nós temos uma porta aberta.
Quando estabelecemos que era essa a Nova Paraisópolis que queríamos construir, tivemos a oportunidade de estar com uma série de especialistas de várias áreas. Nós procuramos aprender com eles o caminho certo, no qual pudéssemos encontrar convergências.
As pessoas, naturalmente, perguntam qual é a minha formação. Uma coisa que me estabeleceu bem entre as pessoas é procurar relacionamentos que não nos limitem ou nos submetam. Nós falamos o que pensamos e brigamos, caso seja necessário. Conseguimos estabelecer relações que fortaleceram a Nova Paraisópolis e mostramos que uma comunidade que se organiza consegue alcançar o que quiser. Ainda falta bastante coisa, houve interrupções. Nós estamos um pouco velhos, há 15 anos nisso. Queremos finalizar o que iniciamos e passar para a geração que estamos formando nossa mentalidade e nossos desejos.
Gilson - Existe a fronteira quando começamos a mexer com questões políticas. No atual momento do país, em que tudo é considerado corrupção, alguém pode falar que o que estamos fazendo é errado. Porém, é bom que as pessoas possam opinar e falar. Assim como no Brasil, em Paraisópolis existe uma série de divisões de pensamentos, mas nós sempre buscamos construir algo que seja comum a todos.
Nós construímos a Nova Paraisópolis com uma campanha chamada “Todos unidos por uma Nova Paraisópolis”. O que é Paraisópolis? Um bairro. Independente do partido político ou da religião, nós queremos a rua asfaltada. Assim avançamos, buscando consensos. Precisamos trabalhar para as pessoas terem a oportunidade de ser o que elas quiserem. Para que, numa oportunidade de se envolver com coisas ruins, também tenham como se envolver com coisas boas.
Eu digo hoje que existe a periferia da periferia em Paraisópolis. Quando houve esses investimentos da iniciativa privada e dos governos para transformar Paraisópolis em um bairro, algumas famílias, principalmente as que estavam mais próximas do centro ou mais distantes do Córrego, conseguiram melhorar sua condição de vida. É uma comunidade muito empreendedora: eram 3 organizações, hoje são 62. As oportunidades educacionais e culturais cresceram bastante. Apesar disso, algumas famílias não conseguiram dar resposta a essas oportunidades, até por estarem mais impactadas por questões como drogas ou violência. Há interesses que fazem com que essas famílias continuem nessa situação. Hoje, no Brasil, existem 25 milhões de pessoas analfabetas e é de interesse de algumas classes que as mesmas continuem assim. Isso tem um impacto importante, tanto econômica como social.
Gilson - O principal potencial transformador é o resultado do que já foi feito até agora. Quem olha Paraisópolis há 10 anos se impressiona com o quanto foi feito e o quanto houve de dedicação e mobilização da comunidade para se transformar. Há 10 anos, todas as casas eram de madeira, todos os anos aconteciam incêndios, além das ameaças de remoção. À medida que conseguimos melhorar a condição daquela rua [das áreas afetadas], as pessoas reformaram suas casas, a comunidade ficou mais bonita, o comércio se regularizou e outras empresas começaram a ser atraídas.
No último período sofremos um retrocesso por causa da política. Tivemos ocupações, grandes incêndios e desabamentos. Isso é um exemplo do que acontece quando um investimento é interrompido e nós perdemos alguns milhões de reais por causa da paralisação de obras. Temos projetos pagos, premiados, com tudo para acontecer (terreno e dinheiro), mas de repente tudo parou.
Eu acredito que, de alguma forma, o futuro das cidades vai ser assim: as pessoas vão se organizar por territórios, ou se autoorganizar, e que algumas regras valerão para alguns espaços e para outros não. É difícil admitir, mas tem coisas que não são possíveis de organizar da forma que estamos fazendo. Talvez seja necessário estudar outras experiências, que deram certo ou errado, para assim criar novas práticas. Algum nível de informalidade vai acontecer. Essas transformações podem se concretizar daqui a muitos anos, e podem ter um resultado que não imaginamos hoje. Em alguns bairros de São Paulo não se vê pessoas, elas estão isoladas dentro de seus muros. Bom seria se as pessoas pudessem ter contato, se relacionar, trocar experiências. Paraisópolis proporciona isso. Essas trocas podem gerar experiências boas e ruins, você é quem decide o que absorver e onde quer chegar. Porém, muita gente não consegue decidir, porque está faltando outras coisas. Então, estamos preparando uma geração com mais oportunidade para separar o joio do trigo, que absorva menos as coisas ruins. É um processo em construção. Acredito que Paraisópolis seja o maior exemplo de um espaço informal que quer ser formalizado, porém, talvez não seja possível se enquadrar nas regras existentes, precisamos estabelecer outros processos.