15/03/2022 - -
Professora e urbanista; ativista pelo direito à moradia e líder do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). Foi coordenadora do Conselho Participativo da região da Sé na cidade por dois biênios, e, em 2018, foi conselheira municipal e estadual de habitação e das políticas públicas para mulheres.
Eu vim para São Paulo, como todo imigrante, com o sonho de vir para uma grande metrópole e aqui conseguir trabalho e moradia; com todos os desejos que são de qualquer cidadão, independentemente do local de origem. Só que, quando eu cheguei em São Paulo, apesar de ser brasileira, eu me senti uma refugiada em meu próprio país. Eu vi que a cidade não era tão acolhedora naquele momento. Mesmo tendo uma aptidão em alguma profissão, a cidade não lhe dava essa abertura. Depois eu entendi que não fazia diferença estar aqui ou em qualquer outro lugar do Brasil, eu não ia me sentir acolhida porque eu não tinha nenhum pertencimento ao local. Essa foi uma desilusão naquele momento.
O caso paulista, a nível de organização popular, exerce uma influência porque tem algumas súmulas de organizações que em outros lugares do país não têm. Por exemplo, os movimentos sociais e as lideranças se organizam no mesmo local em que está o Poder Público, ou seja, dentro dos conselhos, participando efetivamente dos conselhos gestores, das discussões do Plano Diretor.
Quando eu viajo pelo Brasil, vejo que as organizações sociais, a nível da região central, ainda são tímidas, não avançam na discussão de lutar por um centro urbano organizado. Essas ainda focam na moradia como eixo principal, sem ligar a moradia a outros direitos. Mas, de certa forma, hoje, com a comunicação mais rápida, com as redes sociais, com as grandes campanhas para explicitar que a problemática de política pública não está somente em São Paulo, temos grandes discussões, grande movimentação. Há um levante em que as organizações vêm discutindo, a nível nacional, a questão da moradia. Hoje estamos com uma ampla campanha, que é o Despejo Zero. Isso tudo está interligado, e estamos tendo essa troca, que é um compartilhamento de experiências.
Isso, vem da pandemia. Apesar de estarmos em uma pandemia, houve e ainda estão acontecendo diversas ameaças de despejo. Temos quase 300 mil famílias em todo o Brasil que estão sob ameaça de reintegração de posse, sem contar os casos que acontecem sem grande divulgação.
Como ganho social, eu enxergo que as pessoas estão discutindo mais o problema da moradia. As pessoas entenderam que movimento sem teto não é um movimento de pessoas que estão em situação de rua, e, sim, um movimento de trabalhadores que não têm condição de financiar uma casa pelo sistema bancário, pelo sistema do capital.
Outro ganho é a questão de participação do próprio movimento nos mesmos locais em que o Poder Público está. Também vejo mais discussão dentro da academia e nos grandes eixos do próprio Poder Público. Discussões sobre como deve ser o financiamento, como deve ser o investimento em moradia popular. Nós temos uma grande percepção de que essa discussão hoje é muito mais ampla, mais aberta e mais transparente.
Hoje há vários atores discutindo isso, inclusive no âmbito privado. Outro ganho é a compreensão de que não podemos entrar em queda de braço com o Poder Público, mas podemos propor saídas viáveis, podemos discutir isso juntos. Ainda há uma conjuntura desfavorável, visto que a moradia popular não tem uma produção tão ampla quanto o mercado imobiliário em geral. Outra questão é a criminalização, porque, por mais que avancemos, ainda há muita criminalização dos movimentos sociais.
A pandemia desencadeou e tornou visíveis os problemas que ainda estavam na invisibilidade. Na pandemia, as mulheres, mesmo trabalhando pela necessidade do sustento de sua família, foram as primeiras a serem demitidas. A pandemia tornou visível tudo o que estava invisível. Por exemplo, aumentou o número de pessoas em situação de rua. Hoje, temos famílias inteiras e não mais uma pessoa com dependência química ou que estava na rua porque desejou, individualmente. Quem está na rua são pessoas que foram despejadas, que moravam em coabitações... A solidão dos idosos também ficou em evidência. Muitas coisas despontaram com a pandemia, e nós, o Poder Público e todos os cidadãos temos de nos atentar a elas. São problemas reais do nosso país e de muitos lugares. O pacto da solidariedade evidenciou que só trabalhando em rede e na coletividade é que a coisa dá certo.
As mulheres já começam lutando por creche, por comida, por moradia. Quando essa mulher chega no movimento social, ela já vem com essa carga de experiência. Mesmo não percebendo, ela já lidera, já vem com o feminismo presente, porque está sempre lutando por direitos. As mulheres têm uma capacidade de mobilização, de contestar... Quando elas chegam no movimento, encontram um espaço em que há escuta e podem desenvolver suas habilidades.
Nós temos, no entanto, uma grande dificuldade por estarmos em um país machista e patriarcal. Por mais que as mulheres estejam em evidência e exercendo as mesmas profissões que os homens, elas ainda ganham menos. Precisamos pensar em uma reengenharia do trabalho da mulher, porque o trabalho doméstico, o trabalho do cuidado, ainda não tem remuneração. A mulher ainda tem de ter uma igualação, precisamos estar nos mesmos cargos nas grandes empresas. Ainda não temos essa condição de igualdade.
Hoje a comunicação é muito mais rápida, e isso para nós é muito eficaz. Antes, quando sofríamos alguma agressão ou alguma ordem de despejo, dependíamos de alguém que viesse dar notoriedade. Hoje, não, com as redes sociais, assim que acontece alguma coisa a gente já está sabendo. Para além de mostrar as desgraças, a rede social é capaz de ter uma comunicação de chamamento, de dar informação e formação. É eficiente a rapidez de comunicação.
A transformação da cidade se dá quando temos a participação de todos. Hoje é muito evidente que as organizações sociais e o próprio Poder Público estão discutindo o direito à cidade. Para isso, é preciso um equilíbrio entre todos os poderes: público, popular e privado. Se isso não ocorrer, nada vai dar certo.
O que acontece hoje nas cidades é que há uma grande discussão real da importância de esses três elementos estarem em equilíbrio. Quando nós vamos para uma conferência discutir um plano de bairro ou discutir territórios, todos os elementos precisam estar juntos, senão, não dá certo. Essa é a grande diferença, essa abertura de propostas e conversas, essa escuta ativa. O movimento social está discutindo fachada ativa, qual é a melhor localização de um condomínio... Embora ainda seja uma discussão desigual porque as propostas que existem são para o mercado financeiro.
A pandemia teve um impacto na direção do futuro, ratificando um passado bem presente. A pandemia veio desencadear o que nós sempre lutamos: moradia. Quando a pandemia surgiu, a primeira coisa que se gritava era “Fique em casa!”.
E quem não tem casa, vai para onde? Essa sempre foi a nossa discussão. No futuro, o que temos de alcançar é que não dá mais para a participação ser isolada. Hoje a participação tem de estar em uma lista tripla: equilíbrio entre Poder Público, privado e popular. Senão outras pandemias ainda virão, pandemias reais que estão acontecendo com o surgimento desta atual. Hoje temos uma sindemia, uma série de problemas que a Covid trouxe: a fome, a miséria deplorável, a falta de saneamento básico, a falta da moradia. Foram várias pandemias em uma. Para o futuro, todos temos de rever como de fato é a nossa participação. E, mais do que nunca, a política pública tem de ser efetivada no Brasil, principalmente saneamento básico e educação.