19/03/2018 - Rio de Janeiro - O ENTRE foi convidado para colaborar com 12 entrevistas para a publicação da exposição "Muros de Ar" do Pavilhão do Brasil na XVI Bienal de Arquitetura de Veneza em 2018, realizada pelos curadores Gabriel Kozlowski, Laura González Fierro, Marcelo Maia Rosa e Sol Camacho. As entrevistas publicadas em versão reduzida para a Bienal encontram-se na íntegra no site do ENTRE.
Kenarik Boujikian (Kessab, Síria, 1959) é desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo. Graduada em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atuou como voluntária no já extinto presídio Carandiru, foi cofundadora e presidente da Associação dos Juízes pela Democracia (AJD) e conselheira do Fundo Brasil de Direitos Humanos. Participa do Grupo de Estudo e Trabalho Mulheres Encarceradas. Recebeu o 19º Prêmio Franz de Castro Holzwarth de Direitos Humanos, da Ordem de Advogados do Brasil de São Paulo, em 2002, Ano da Paz, entre outras premiações.
Kenarik Boujikian: O desafio que entendo premente é a necessidade de mudar a cultura dentro do próprio Judiciário. Vemos que uma grande parcela dele não tem clareza de que seu papel é garantir direitos fundamentais, direitos humanos. Dificilmente essa missão será concretizada se o Judiciário não enxergar como sua real função dentro da sociedade democrática.
O Judiciário não tem limites em relação ao Executivo justamente por ser o último poder a decidir qualquer causa. Seu único limite é a Constituição Federal, na qual encontramos as garantias fundamentais. Por exemplo, o limite do orçamento passa pelo crivo do Executivo e Legislativo, mas o Judiciário pode interferir à medida que os outros poderes não atuarem devidamente. Um caso emblemático decidido pelo Judiciário foi sobre a inexistência de creches, o que acontece em muitas cidades. Algumas pessoas argumentam que o judiciário não deve agir sobre essa questão, pois vai interferir no orçamento, uma lei votada anualmente. Então, qual é o limite? Foi decidido que o direito à educação é fundamental. O direito da criança a um desenvolvimento integral está na Constituição.
Kenarik Boujikian: O punitivismo não é exclusivo do Judiciário. É uma cultura que perpassa todos os poderes, da criação e aprovação das leis à forma como são executadas, até chegar ao Judiciário. O punitivismo nas cidades reflete o local onde o sistema penal escolhe atuar. E ele atua, significativamente, nas periferias, ainda que os fatos não aconteçam necessariamente nas periferias. O punitivismo encontra as pessoas que estão à margem e daí começa a seleção. O Estado como polícia começa a atuar nessas pessoas, na sequência isso chega ao Ministério Público e, com um processo, vem ao Judiciário. É uma espécie de rede, uma teia. Esse desenho fica refletido, depois, no sistema punitivo, nas condenações e dentro das prisões.
Kenarik Boujikian: Vai ser muito difícil regular algo que não nasceu para ser regulado. A intervenção militar está dentro do macro - o estado de exceção que se instaurou no Brasil desde a deposição da Presidenta Dilma. Começam ali uma série de mudanças de estruturas que vão se adensando para fortificar esse estado de exceção, envolvendo os três poderes. Perdemos vários direitos construídos desde a retirada da presidenta, um retrocesso que ganha corpo a cada dia. A reforma da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) rompe com a conquista histórica de direitos fundamentais. O congelamento do orçamento por vinte anos vai repercutir em todos os direitos. A norma internacional que regulamenta os direitos humanos diz que nunca se pode retroceder nos direitos, pode-se apenas avançar.
A intervenção militar é o estado de exceção se aguçando no limite do uso da força. Poder dos militares significa uso máximo da força. Não é pouco o que eles querem: livre acesso à vida das pessoas, sem estar sujeitos à nenhuma comissão da verdade. Eles já anteveem porque sabem dos arbítrios. Nós vamos colher os corpos. Nós vamos colher a dor. Já estamos colhendo.
Kenarik Boujikian: Quem expede os mandatos de busca e apreensão coletiva? O Judiciário. E os mandados coletivos só acontecem nas favelas. E a intervenção militar atinge quem? As favelas, onde há um Estado diferente para uma determinada população. Criança sendo revistada? Consigo imaginar isso acontecendo comigo? Direitos humanos pressupõe ser igual ao outro, se colocar no lugar do outro. O estrago está feito. E agora o Supremo Tribunal Federal risca a Constituição Federal, como decidiu na execução imediata da pena com julgamentos em segunda instância, que espero que seja revertida.
Kenarik Boujikian: No processo constou como onze, mas levantei com a minha equipe e eram quase cinquenta casos. Ficou claro que existem duas visões de mundo diferentes dentro do Judiciário. No julgamento do caso, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um dos conselheiros disse que eu estava sendo julgada pelo meu modo de ver o mundo. Esse caso mostra o pensamento punitivista. O Estado elegeu um inimigo, alguém que pensava diferente, assim como no passado recente, no período da ditadura civil-militar, também havia um inimigo. Hoje, os novos inimigos são determinadas pessoas, tratadas como se não tivessem direitos, dignidade ou valor humano. Se não te vejo como ser humano, faço o que quiser com você, te uso da forma mais conveniente. Seja por você ou para mostrar para a sociedade alguma coisa através da sua ausência de valor. O inimigo está eleito. Os muros estão ali. O muro está claro na intervenção militar no Rio de Janeiro, embora não se veja fisicamente.
Kenarik Boujikian: Não sei se temos avanços. Infelizmente, o Brasil é um dos campeões no número de ativistas assassinados - ativistas rurais, urbanos, em qualquer espaço de atuação. Todos ligados aos direitos fundamentais, especialmente ao direito econômico. Por que morrem tantos indígenas, tantas pessoas ligadas às questões da terra? E agora a morte da Marielle Franco, uma pessoa que realizava o enfrentamento para acompanhar a sequência de violações da intervenção militar, uma voz para controlar e mostrar o perigo que o Brasil está vivendo.
Existe um grupo forte de pessoas que estão na luta e temos um crescimento de pessoas que se insurgem em relação a tudo que aconteceu nos últimos anos. Temos que romper essa barreira, ninguém fará por nós. Cada um dentro dos seus limites, da forma que puder - conversando com familiares, indo nas manifestações. Minha atuação como juíza só pode ser para garantir os direitos fundamentais e militar por direitos humanos. Temos que ir para as ruas - é um bom espaço em que a sociedade pode se encontrar e se manifestar. Na verdade, já temos um rumo que foi marcado em 1988. Estamos vendo a Constituição Federal ser rasgada a cada dia. Mas ainda dá tempo, temos que continuar reagindo, não podemos desanimar.