18/02/2018 - São Paulo - O ENTRE foi convidado para colaborar com 12 entrevistas para a publicação da exposição "Muros de Ar" do Pavilhão do Brasil na XVI Bienal de Arquitetura de Veneza em 2018, realizada pelos curadores Gabriel Kozlowski, Laura González Fierro, Marcelo Maia Rosa e Sol Camacho. As entrevistas publicadas em versão reduzida para a Bienal encontram-se na íntegra no site do ENTRE.
Claudio Bernardes (São Paulo, 1954) é empresário da construção civil. Formado em Engenharia Civil pela Escola de Engenharia Mauá, é mestre em Engenharia pela University of Sheffield e especialista em engenharia de produção para construção civil pela Fundação Vanzolini/USP. Há mais de 40 anos, atua como empresário no mercado imobiliário, com ênfase na área de desenvolvimento urbano no estado de São Paulo. É diretor-presidente da Ingaí Incorporadora S/A, presidente do conselho consultivo do Secovi-SP, que integra desde 1985, e presidente do Conselho de Gestão e Secretaria de Urbanismo e Licenciamento na Prefeitura Municipal. Professor de desenvolvimento urbano no MBA em Gestão de Negócios Imobiliários da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), é colunista da Folha de S.Paulo e autor dos livros Plano diretor estratégico, lei de zoneamento e atividade imobiliária em São Paulo (2005) e Qualidade e o custo das não-conformidades em obras de construção civil (1988).
Cláudio Bernardes: Eu acho que não deveria haver distância nenhuma, mas as vezes existe por questões de mercado. Normalmente, o empreendedor imobiliário tem a função social (embora as pessoas não acreditem que ele possa tê-la), de equilibrar oferta e demanda. Para que isso aconteça, ele tem que fazer os produtos que as pessoas querem, pelo preço que elas possam pagar. Às vezes o produto desejado não é exatamente aquele que podem consumir ou o produto que querem e podem pagar, não é exatamente aquele que a boa técnica da arquitetura ou do planejamento urbano coloca. É uma questão complexa, uma equação difícil de ser solucionada. Ao longo do tempo existe esse embate – do ponto de vista positivo – entre o setor público (que é o responsável por planejar e orientar os rumos de crescimento da cidade) e o setor imobiliário (que precisa fazer o elo entre o consumidor e ao regramento). Quando se fala: tal regra vai beneficiar o setor imobiliário, na verdade ele está tentando fazer com que aquela regra caiba no bolso do consumidor, pois precisa produzir o que vai ter escoamento no mercado. Lógico que também existem os excessos, afinal há setores do mercado que querem maximizar o lucro, mas sempre pensando em uma forma de poder viabilizar o mercado. É claro que não se pode fazer uma cidade que não tenha os requisitos urbanísticos adequados de qualidade de vida, porque senão ninguém vai querer morar nela e o empreendedor imobiliário não vai ter para quem vender. É uma equação complicada.
Cláudio Bernardes: Temos que entender que o mercado imobiliário é um veículo de transformação da cidade e, na verdade, é quem a constrói. Ele só faz isso baseado no regramento estipulado por quem detém a hegemonia de conduzir a política urbana. Dizem que o mercado estraga a cidade, mas o mercado formal constrói a cidade de acordo com as regras que estão dispostas na lei, de acordo com as diretrizes e objetivos colocados pelos planos diretores das cidades. A questão que o mercado aprendeu há pouco tempo é: na hora que se discute a cidade e um plano diretor, é importante que ele participe do processo para mostrar, para aqueles que estão orientando as políticas de desenvolvimento urbano, o que vai ou não vai dar certo. Não existe possibilidade do mercado fazer uma coisa que não esteja previsto por quem planejou.
Dentro do regramento disposto existe uma certa flexibilidade. Introduzir no mercado imobiliário a consciência de que não se deve maximizar os lucros, mas ganhar o suficiente, deixando uma cidade mais ventilada, mais verde, é um conceito que vem sendo incutido aos poucos. Essa dissociação, que diz respeito a sua pergunta, é muito ruim para a cidade. Isso significa que os regramentos têm de ser detalhados ao extremo. Os mecanismos básicos que orientam o desenvolvimento urbano devem estar contidos no regramento. E tem de existir, por parte daqueles que vão executar, uma consciência de que a cidade deve ser para todos, privilegiando os espaços para as pessoas. Aí surge a discussão se o freespace é público ou privado. No regramento aqui em São Paulo temos a possibilidade de ter áreas de fruição pública, que em alguns casos é obrigatória e em outros não. Por que não há a preocupação com a questão do espaço de fruição pública no planejamento de um empreendimento ou em outros projetos? Para que a gente tenha uma cidade melhor, é fundamental que haja integração entre interesses públicos e privados. Devemos buscar por essa conscientização e o tempo vai levar a isso.
Cláudio Bernardes: Há alguns anos não havia praticamente nenhum. Vemos tanta favela, sub habitação e cortiço justamente porque não tem uma política habitacional que privilegie alternativas. Falamos em não maximizar o lucro, mas o mercado precisa ter algum lucro que mantenha a empresa viva, pague seus funcionários e faça valer a pena toda a dor de cabeça que envolve ter uma empresa nesse país. Empreender gera uma preocupação enorme, pois está ficando cada vez mais difícil, então o prêmio tem que ser maior. De qualquer maneira, o Minha Casa Minha Vida é um programa interessante, mas, sem dúvida, tem uma série de problemas e até erros do ponto de vista do planejamento urbano. Juntar um excesso de gente em um lugar bem distante, com a justificativa de que o terreno é barato, implica em um custo muito maior para levar a infraestrutura. Fora esta questão, o mérito do programa foi trazer condições para que o mercado começasse a atender essa população, o que obviamente só começou a acontecer a partir de um subsídio do próprio Estado. Grande parte da população do Brasil têm uma renda tão baixa que não pode comprar nada do mercado. Esse subsídio viabilizou o atendimento do mercado da Faixa 1 (a faixa de menor renda). Em um curto período foram produzidas três milhões de unidades que, apesar de todos os problemas urbanísticos, ainda é melhor do que morar em uma favela ao longo de um córrego com esgoto. É um programa interessante, mas sem subsídio, a única maneira é fazer com que a economia cresça para as pessoas ganharem mais. Aliás, esse é um problema de fundo do Brasil e dos países que estão em desenvolvimento, pois existe um gap de rendimento muito grande. Como cidadãos, precisamos lutar para que isso diminua. Não é possível que um trabalhador braçal, ganhe um salário tão inferior ao de uma pessoa que tem um curso universitário. Em países mais adiantados a diferença é pequena, você ganha mais ou menos a mesma coisa independente do fato de ser bombeiro, motorista ou engenheiro.
Quase não existe a oportunidade da população de baixa renda entrar no mercado imobiliário sem o subsídio.
Cláudio Bernardes: Sem o subsídio é muito difícil. Apesar disso, podem existir ideias interessantes de subsídios indiretos que permitam que isso aconteça.
Ser mais criativo na parte financeira.
Cláudio Bernardes: É, por exemplo: subsidiar habitação popular com potencial construtivo é uma coisa interessante. Qual a vantagem disso? Não tem um desencaixe imediato de recursos das prefeituras que geralmente não os possuem. Quando dão potencial construtivo como subsídio para uma habitação de interesse social, na verdade, a sociedade toda está contribuindo para que os menos favorecidos tenham uma habitação. É um processo interessante.
O que acontece em outros países é misturar diferentes rendas em um só edifício.
Cláudio Bernardes: Isso é uma coisa interessante, tem nos Estados Unidos por exemplo.
No Canadá também tem.
Cláudio Bernardes: Sim, mas um formato um pouco diferente. Primeiro que esta obrigatoriedade é temporária. É obrigatório colocar pessoas de diferentes padrões de renda no mesmo local, mas depois de um período já pode vender. Essa é uma conta que também fecha. Volto a falar das nossas bases, pois a diferença do Brasil é que, infelizmente, a gente tem uma enorme diferença de renda, educação e cultura. Em outros países as pessoas têm uma diferença de renda grande, mas, culturalmente, podem conviver muito bem. Aqui no Brasil é complicado porque tem gente que não se comporta bem, então existe essa dificuldade de convivência. Todos nós sabemos que o Brasil deve começar a investir maciçamente em educação, senão nada vai dar certo. Eu acho que o próximo Presidente da Republica deve ter essa prioridade para o Brasil: investir em educação. Se fizermos isso durante quarenta anos, temos um outro país. Isso aconteceu na Coréia em trinta anos.
Claudio Bernardes: Quem cria o produto? O mercado cria o produto a partir da demanda do consumidor ou é o contrário? É um mix das duas coisas. Tem muita coisa que o consumidor não sabe o que quer até que alguém o apresente. Sinto um pouco isso no mercado: existe a pesquisa quantitativa e qualitativa para entender o que o consumidor quer e também existe a criatividade do arquiteto e do empresário para entender o que seria um produto interessante para o consumidor. Em São Paulo existem produtos arquitetônicos diferenciados por regiões da cidade como por exemplo: a Zona Leste gosta de cozinhas maiores, mas na Zona Sul é diferente. Outras coisas desse tipo vão montando o desejo do consumidor e essa é uma interação importante. Isso quer dizer que talvez a função do arquiteto seja conceber as ideias interessantes que vão passar pelo crivo do incorporador e do consumidor, para termos então um produto palatável no mercado.
Claudio Bernardes: Temos que dividir o Brasil ou os brasileiros por faixas etárias, pois são diferentes. O brasileiro jovem solteiro ou o recém-casado, quer uma casa pequena, prática, perto de transporte público e walking distance da maioria das coisas que ele pode fazer. Temos uma faixa grande de pessoas entre os vinte e cinco e trinta e cinco anos que querem esse tipo de produto, principalmente em grandes metrópoles. Isso representa grande parte da nossa população, porque a nossa pirâmide etária está mudando, já é quase um cilindro etário, né?
Cláudio Bernardes: Querem a vida na cidade, mas não querem o carro; almejam uma mudança drástica. Na minha geração de jovens, não víamos a hora de fazer dezoito anos para ter um carro. O mercado imobiliário muda a medida que o transporte público, o compartilhamento de veículos e todos esses modelos alternativos passam a ser importantes dentro da cidade. A última pesquisa “origem-destino” do metrô na cidade de São Paulo apontou que os automóveis representam aproximadamente 26% de todas as locomoções feitas, já o ônibus 23-24%, metrô 7% e a pé 30%. Nós já estamos nesse modelo e a tendência é diminuir ainda mais o automóvel e até diminuir o ônibus para aumentar o metrô. A pessoa um pouco mais velha também está querendo uma coisa mais prática, mas deseja mais espaço e conforto. Alguns preferem o apartamento e outros a casa, mas em local seguro. Sendo assim, em cidades mais adensadas como São Paulo, cria-se um enorme nicho de condomínios de casas. Em cidades do interior, são os loteamentos fechados que tem um grande apelo. Dividiria os brasileiros nessas duas categorias principais, mas depois tem as menores.
Cláudio Bernardes: O projeto da Nova Luz foi, primeiramente, proposto pelo Governo Municipal. Queriam a participação da iniciativa privada, mas da forma como este nos foi apresentado, não era viável economicamente. Se fosse feito apenas com recursos públicos - fundo perdido, qualquer projeto funciona porque não precisaria dar lucro. Hoje em dia, com as prefeituras sem recursos, a maioria dos projetos necessita de uma parceria e, nesse caso, não daria certo. Perguntamos para o prefeito da época -acho que era o Serra- se ele tinha interesse e depois contratamos o Jaime Lerner para criar um projeto dentro da legislação existente, com poucas mudanças, mas que tinha equilíbrio econômico e financeiro. Qual era a ideia? Se conseguíssemos fazer um núcleo importante no centro da cidade, achávamos que isso irradiaria um processo de desenvolvimento que além de revitalizar o centro, criaria um mercado interessante. Muitas pessoas gostariam de morar no centro, mas apesar de ter uma boa infraestrutura, apresentava dificuldade do ponto de vista da segurança e uma série de outras coisas. Imaginamos um projeto que conciliasse o interesse público, o privado e o das pessoas que poderiam morar lá. O projeto foi muito mal vendido do ponto de vista do marketing. Lembro que houve reações contrárias como a do pessoal da Santa Efigênia. Eles não queriam ser desapropriados, mas o projeto era “dar um banho de loja” na Rua Santa Efigênia e transforma-la no maior centro de eletroeletrônicos da América do Sul, sem tirar ninguém de lá. Alguém falou que eles iriam ser desapropriados, desencadeando assim uma série de desencontros. Não foi possível ir para frente com o projeto, mas em compensação foram adiantados alguns regramentos como a concessão urbanística, que é um instrumento interessante para fazer projetos desse tipo. Por acaso está sendo usado novamente em um projeto de revitalização do Centro, que o Doria pediu para o SECOVI contratar o Jaime Lerner para desenvolve-lo. Trata-se de uma área bem grande, até um pouco maior que o perímetro da operação urbana, pois abrange todo centro (desde Campos Elíseos até o Parque Dom Pedro). Esse projeto está em andamento e, de todos os que vi até hoje, talvez seja o que mais se aproxima de um projeto factível, que possa realmente ter um efeito transformador no centro da cidade. É um projeto para muitos anos e que não é simples, pois a sua equação econômico-financeira fecha com uma operação urbana bem planejada. Estamos estudando fazer um projeto piloto, com todas as ideias e a força do projeto maior, mas em uma área concentrada. Escolhemos justamente a Cracolândia, a área mais complicada do Centro, para implementa-lo. O parque, o Largo do Arouche e a Sala São Paulo seriam ligados pela Av. Duque de Caxias, criando um boulevard totalmente renovado, conectando com uma série de outras ideias.
Cláudio Bernardes: Essas parcerias são uma alternativa muito interessante para a ambiência econômica que estamos vivendo, pois a crise é muito grande e temos pouco recurso público. Se o poder público tem um ativo que pode ser colocado na mesa e tem o poder de regular essa questão, eu acho que esse é um modelo super vencedor. Vão fazer a licitação para o Parque Ibirapuera e mais outros cinco ou seis. A empresa que pegar o Ibirapuera também leva todo o resto. Desta forma, começamos a tentar concatenar os interesses públicos, os privados e os da população. A população quer ter um parque bem cuidado, estruturado e com banheiros em boas condições para utilizar. O poder público preferiria não gastar dinheiro para dar à população um parque com todas essas características. Se o poder privado puder fazer isso tudo e ganhar dinheiro, ele fará. O poder público não tem condição de fazer uma série de coisas que o privado pode oferecer como explorar os restaurantes e a publicidade, dentro do parque de forma adequada. Sendo assim, o poder público pode estabelecer os regramentos que garantem que aquele produto final seja bom para cidade, que é o estamos sempre querendo. No caso das habitações sociais também é a mesma coisa. Essas parcerias devem envolver questões de interesse do Estado e da população (que o Estado ordena) e ainda sobrar lucro para o empreendedor que vai investir. Com esse equilíbrio podemos considera-lo um modelo muito vencedor, mas ainda temos que o aperfeiçoar. Como o modelo é realmente muito interessante, ao invés de descarta-lo temos que lutar para melhora-lo.
Quando os custos são muito apertados e a renda não existe, temos que extrair as questões com criatividade. Já que não tem dinheiro, o poder público precisa usar outros mecanismos, surgindo ideias como a de transferir potencial construtivo como moeda e mecanismos como o TIF (tax incremental financing), em que os títulos são emitidos em função de impostos que serão arrecadados no futuro a partir da revitalização de algum lugar. Existe um esquema interessante em que o Estado pega uma área totalmente deteriorada e oferece (por trinta anos) para o poder privado explorar. A empresa provavelmente irá investir para transformar a região e fazer com que essa área se torne mais valorizada. Sendo assim, quando o terreno voltar para a posse do Estado, ele arrecadará muito mais de IPTU do que antes.
Cláudio Bernardes: A barreira está um pouco mais na academia do que nos bons arquitetos. Se é possível dividir os arquitetos, que eu acho difícil, existem os que estão mais acostumados a trabalhar com a iniciativa privada, que são até discriminados perante a classe como um todo. Existem os chamados bons arquitetos (e eu os coloco nesse nível principalmente por causa do preço que cobram, porque são bons, porque são famosos, inteligentes, tem ideias brilhantes, e isso vale) e tem a academia. A maior barreira é na academia, porque ela dissocia o produto-arquitetura do produto-mercado (e não interessa se é imobiliário ou não). O produto arquitetura como um ente acadêmico tem o seu valor, mas muitos deles quando colocados no mercado, do ponto de vista prático, não tem valor nenhum. A pessoa passa trinta anos na academia fazendo coisas que nunca sairão do papel, mas tem a sua importância porque esses estudos evoluirão para algo que será executado um dia. Para isso, é preciso que haja a compreensão de que só vai sair do papel aquilo que tiver mercado (não falo apenas do mercado imobiliário e sim de uma forma ampla). Da mesma forma que os projetos feitos pelos arquitetos renomados, só têm espaço no mercado se atuarem em um nicho aonde haja esse equilíbrio econômico-financeiro do valor da ideia que eles têm. Um arquiteto como o Jean Nouvel tem um produto tão brilhante que, apesar de cobrar muito caro, existe um meio de pessoas (com muito poder aquisitivo) que querem pagar por isso. Desta forma, a equação se torna viável.
Cláudio Bernardes: Para começar a mudar os produtos arquitetônicos, reconfigurar a questão dos custos de produção e do gosto do consumidor, tem que haver um processo interativo entre o incorporador e os arquitetos. O empreendedor faz aquilo que vende, aquilo que as pessoas gostam, mas é o que eu falei anteriormente: tem coisas que as pessoas gostam mas que nem sabem que existe. Os próprios arquitetos têm que ser um pouco mais arrojados nas suas propostas, para convencer os incorporadores que aquilo é bonito, vai vender e que tem formas de produzir coisas bonitas e diferentes com os mesmos custos. Cabe aos arquitetos propor isso, porque existe uma certa inércia do incorporador. Claro que existem alguns que vão atrás dessas novidades e de arquitetos que eles viram que tem projetos mais interessantes. Os dois têm que se movimentar um pouco, mas se os arquitetos forem um pouco mais proativos vai acelerar o processo.