SÔNIA GUAJAJARA

29/05/2023 - -

Líder indígena e política brasileira, Sônia é coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Graduada em Letras e Enfermagem, e especialista em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão. Em 2022, foi nomeada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time. Em 2023, tornou-se ministra dos Povos Indígenas do governo Lula.

É até difícil sinalizar um momento em que eu me entendi nessa luta, porque para mim é uma rotina, uma sequência diária. Estou sempre defendendo alguma coisa e tentando entrar nos espaços que se mostram fechados. Isso foi uma constante em minha vida. Mas acho que tem um momento que eu comecei a entender que existia um movimento indígena organizado: foi em 2001, quando eu participei do Primeiro Movimento Indígena Nacional. Foi uma conferência pós-marcha.

Em 2000, tivemos a Marcha dos 500 anos, “Brasil, outros 500”. Essa marcha para Porto Seguro reuniu indígenas de todo o Brasil, que saíram em caravanas e se reuniram para a “contracomemoração” dos 500 anos. Naquele momento, houve uma grande briga interna no movimento indígena, porque o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso concordou com algumas lideranças indígenas para apoiar o seu governo, enquanto outra parte do movimento não concordou.

Ali houve também um confronto direto com a polícia, que tentou atacar os acampamentos do movimento. Era para ser um momento pacífico, de memorização dos 500 anos e acabou sendo muito violento. Indígenas apanharam da polícia, assim como militantes e integrantes dos movimentos sociais. Foi um momento marcante não somente pela data em si, mas pela confusão e violência que constituíram esses 500 anos de Brasil, as quais foram retratadas naquele momento.

Em 2001, a Conferência avaliou os 500 anos e pensou os rumos do movimento indígena, já que tivemos quase um racha. Foi a primeira vez que vim para o Movimento Nacional em Brasília. Ali eu escutei, prestei atenção e entendi a necessidade de fazer a luta pela terra. Foi o momento em que descobri que existiam indígenas sem-terra, sem-terra demarcada, vivendo em retomadas, em acampamentos, na beira da estrada, sem suas aldeias... Antes, eu conhecia apenas o meu mundo, a minha terra, o meu estado. Aquilo me inquietou e eu voltei pensando: eu não posso mais ser a mesma, tenho de voltar, organizar meu estado – o Maranhão – e fazer a luta de uma forma mais ampla. Voltei de ônibus com a cabeça fervilhando.

Quando eu cheguei, chamei lideranças do estado e de outros povos, e assim começamos a conversar. Eu não tinha noção de como organizar um movimento, ia perguntando e descobrindo. Juntamos 15 lideranças e começamos a discutir o movimento indígena no estado do Maranhão. Dessas 15, sobraram cinco, e fizemos uma assembleia, em 2002, para discutir a criação de um movimento indígena organizado no Maranhão. Fizemos uma grande assembleia, até hoje não sei como reunimos tanta gente sem ter recurso e apoio. Alguém pagou a comida, outro, o combustível. Planejamos o encontro para 70 pessoas e tivemos 150 presentes. Foi um momento incrível.

No ano seguinte, em 2003, fizemos a assembleia para criar a organização de fato. Eu era integrante da diretoria. Naquele momento, as pessoas ainda viam as mulheres no movimento como “as secretárias”. Eu fiquei como “diretora secretária” dentro da coordenação executiva, porque só isso que nos era permitido. Fiquei dois mandatos no Maranhão exercendo essa função. Meu papel foi muito importante no movimento e no estado, porque conseguimos mobilizar todas as bases. Eu rodei todas as cidades do Maranhão, todos os povos, oferecemos cursos... Tudo isso por meio da articulação com outros movimentos e apoiadores, sem recursos.

Com esse trabalho, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) percebeu que eu estava mobilizando bem e, no último ano, me convidaram para compor a coordenação executiva, mas, de novo, me chamaram para ser secretária. Primeiro eu relutei, mas depois aceitei sem questionar muito. Quando eu contei para as outras mulheres, elas falaram que eu não podia ser secretária, que elas só me apoiariam se me tornasse Coordenadora Geral ou vice. Eu concordei e percebi que dava conta. Avisei aos meninos que eu ia concorrer a vice, eles falaram que já tinha uma pessoa para o cargo, mas eu disse que a assembleia é soberana e eu ia disputar os votos. Éramos três na disputa, eu e mais dois homens, duas lideranças tradicionais. Eu tive mais votos do que o dobro dos dois somados.

Essa saída do contexto somente do Maranhão para a Amazônia como um todo me fez entender a lógica e o que estava em jogo. Foi quando eu comecei a participar na luta climática. A COIAB foi como uma universidade do movimento, porque foi ali que eu comecei essa relação de articulação internacional. Eu fiquei somente um mandato e decidi voltar para o Maranhão, em 2013. Na parada em Brasília, fui eleita executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Não consegui sequer chegar em casa, ali mesmo em Brasília, eu já fiquei. Agora estou no nono ano da APIB. Quando terminei o primeiro mandato, comecei a articular minha participação na política partidária e, em 2018, me afastei da APIB por um ano para concorrer à presidência do Brasil, como vice. Em 2019, voltei e estou lá até o mês de agosto, quando meu ciclo se encerra.

Para mim, o que alçamos até hoje de reconhecimento é resultado de toda essa trajetória e das ações coletivas que fizeram o passo a passo, do regional ao nacional e com repercussão internacional. Como o Guilherme Boulos fala, não se trata de uma corrida de 100 metros, é uma maratona gigante, que corremos todo dia. É um conjunto que se soma: o apoio da família, de pessoas de confiança, da base territorial que nos coloca para cima, da capacidade de articular com outros movimentos... Essa articulação para nós ainda é difícil, porque poucas lideranças têm essa flexibilidade de se relacionar com outros movimentos. Eu sempre tive muito cuidado com isso, entendendo que nós, como movimento indígena, não conseguiríamos fortalecer nossa luta sem fazer parcerias com outros movimentos. Hoje nós somos, enquanto movimento social no Brasil, um dos mais fortes, principalmente na luta contra o governo Bolsonaro.

A APIB é uma articulação nacional, criada há 18 anos, e composta por organizações macrorregionais. Nós temos apenas sete coordenadores executivos, cada um vindo de sete organizações diferentes que a compõem. Eu, por exemplo, represento a COIAB dentro da APIB. Nós temos um fórum nacional de lideranças, um encontro que fazemos por indicações dessas organizações. Nele discutimos nossas prioridades anuais, o que está em jogo no Congresso, no Executivo e em quais ações podemos entrar no Judiciário; fazemos uma análise geral do que está posto para o ano. Por exemplo, ano passado Bolsonaro apresentou as 31 prioridades de seu governo. Nós estávamos em todas, menos na política cambial. Eu disse: “Aí é que vocês se enganam, nessa que a gente está”. Porque ele queria mudar a forma de receber os recursos internacionais, visando dificultar o acesso aos recursos que fortalecem as mobilizações. O que aparentemente não tinha nada a ver conosco, na hora percebi que era uma estratégia para inviabilizar a nossa luta.

A gente fica alerta o tempo todo e faz o embate direto no Congresso para impedir essas medidas anti-indígenas e antiambientalistas de tramitarem. Fazemos um apanhado geral do que pode nos impactar, sejam portarias, medidas provisórias, projetos de lei, projeto de emenda da Constituição... Avaliamos com nossos advogados a parte jurídica e nos organizamos para enfrentar uma por uma. Nos articulamos com os assessores dos parlamentares que estão dentro do nosso campo no Congresso e fazemos parcerias com entidades de apoio. Temos um grupo chamado Mobilização Nacional Indígena, com mais de 40 entidades no Brasil que se reúne toda segunda-feira para, a partir de análise da conjuntura, organizar a semana. Fazemos também o Acampamento Terra Livre, que é a assembleia máxima dos povos indígenas no Brasil, em que consolidamos nossas ideias com todos, aprovamos as pautas e seguimos na pressão com as marchas.

Então, a APIB acompanha toda a política nacional, indigenista e ambiental. Nem sempre a gente ganha, porque as bancadas contrárias são muito maiores, mas já conseguimos vetar muitas políticas contrárias com a nossa presença permanente em Brasília. Esse retrocesso só não está pior por causa dessa pressão exercida; pelo acompanhamento e articulação que fazemos dentro do Congresso, com as entidades de apoio e com a comunidade internacional. Trabalhamos sempre com essas três redes.

A articulação das mulheres indígenas existe desde sempre. Quando eu cheguei no movimento, já existia. Mas nunca tivemos um nome, uma identidade. No contexto da pandemia, em uma de nossas discussões on-line, falei que precisávamos de um nome para fazer um recorte das mulheres dentro da APIB. Em 2021, quando saiu a vacina, propus fazer um fevereiro de lives para orientar sobre a importância da vacina. Eu chamei as mulheres do movimento e fizemos lives semanais para cada bioma. Uma semana era Amazônia, na outra era o Cerrado, na outra, a Mata Atlântica... Falamos sobre a importância da vacina e desmanchamos as mentiras. Chamamos de “Vacina, Parente!”.

Em março, no mês das mulheres, seguimos com as lives e começamos a pensar em um nome. Pensei nesse nome de “AMIGA”, mas o que seria o “GA”? “Guerreiras da ancestralidade! Combinou muito! Pegou bem, todo mundo gostou. Criamos a ANMIGA dia 8 de março de 2021. Já criamos lançando um site com o histórico e fizemos o março das Originárias da Terra. Fizemos uma live de lançamento com 80 mulheres falando, foram 8 blocos de 10 mulheres. Começou às 15h e terminou às 21h! Eu comecei lá no Maranhão, fazendo a abertura, viajei para o Rio de Janeiro e, no Rio, fiz o encerramento. Foi muito legal, as mulheres se animaram.

Ano passado realizamos a nossa segunda marcha, porque a primeira ainda não era formalizada como ANMIGA. Este ano, estamos organizando a caravana das Originárias, que já está em circulação. Ela está agora no Nordeste e vai rodar todas as regiões para mobilizar todas as mulheres territoriais. Temos as mulheres “Raiz”, que estão na base, na aldeia e são do território. Toda terra indígena e todos os povos têm uma mulher representando, às vezes, têm mais de uma. Temos as mulheres “Semente”, que estão nos estados. Temos as mulheres “Biomas”, uma para cada bioma, as quais formam um conselho menor e mais emergencial. Temos as mulheres “Terra”, que foram as criadoras da ANMIGA. Elas são referência para tudo o que fazemos, e agora estão circulando na caravana. Por fim, temos as mulheres “Água”, que nos representam no nível internacional; ultrapassam fronteiras e oceanos. Assim, podemos atingir todos os povos e todos os níveis de contato e participação das mulheres.

A caravana resume bem o que temos como pauta: a participação das mulheres na política – o papel das mulheres indígenas frente às mudanças climáticas; a valorização da sociobioeconomia das mulheres; o combate às violências de gênero e doméstica; e o fortalecimento de redes. A ideia da caravana também foi minha, com o intuito de fazer algo mais amplo e democrático. As meninas me perguntaram como faríamos sem recursos, eu respondi: “Basta ter a ideia, depois o dinheiro chega”.

Agora estamos em processo de finalizar a candidatura das mulheres indígenas, vamos fortalecer a Bancada do Cocar. Nossa pré-campanha é o Chamado pela Terra, com o objetivo de fortalecer a participação das mulheres na política.

Isso foi realmente incrível. Não estávamos esperando esse resultado. São tantas pessoas hoje na luta, que receber essa nomeação não estava em nosso radar. Essa notícia mostra que nossos esforços valem a pena. Às vezes achamos que não estamos tendo resultado, que está difícil, mas, ao recebermos esse reconhecimento, percebemos que é preciso fortalecer ainda mais.

Não é fácil alcançar determinados espaços. A própria mídia aqui no Brasil demorou a enxergar a realidade indígena como notícia. Primeiro atravessamos as fronteiras nacionais, chegamos no internacional para depois poder voltar. Quando vem de fora, o Brasil reconhece a pauta. Agora, acho que melhorou um pouco esse cenário, já conseguimos mais acesso. Isso é muito importante, porque nos encoraja a seguir, mostra um resultado das ações coletivas e de como é importante a articulação com grupos diversos. Com isso, conseguimos alcançar um público que jamais alcançaríamos apenas com os nossos meios.

Não queremos ter visibilidade para estar em uma capa de revista, mas para transformar a nossa realidade. Se as pessoas conhecerem e se interessarem, vão aderir à causa. Uma das coisas que mais queremos aproveitar é a oportunidade de mostrar o papel desempenhado pelos povos indígenas para toda a humanidade e para o planeta. As pessoas não sabem o quanto o modo de vida indígena contribui para o clima, para o planeta, para a preservação da biodiversidade. Poucas pessoas da cidade conectam suas vidas a quem está fazendo essa luta diariamente. Queremos aproveitar o momento para fazer com que as pessoas tenham essa sensibilidade e essa compreensão de que a luta indígena é humanitária, civilizatória e para o bem do planeta. É urgente essa conexão ou reconexão com a terra enquanto mãe e não como lote, ou objeto. Por isso nossa campanha se chama o “Chamado pela Terra”. Nós, indígenas, que escutamos esse chamado, entendemos que precisamos convocar os outros também. 

Uma coisa que temos feito nessa articulação e nessa alavancada que as mulheres estão dando é ter cuidado para que isso não seja entendido como uma disputa entre mulheres e homens. Não é uma disputa para as mulheres estarem à frente, queremos complementar a luta. Não dá mais para entender como cultural a não participação das mulheres. Historicamente isso foi dado como algo cultural, como se fosse natural sermos subservientes, estarmos em papéis subalternos e que determinados povos não aceitem mulheres no papel de liderança. Isso não é cultura, isso é o machismo impregnado, que chegou em nosso território também como herança colonial. Nós fomos entendendo a necessidade de estar perto, de estar junto, de assumir esses papéis e o protagonismo da nossa própria história. O momento é de fortalecer a luta como um todo, não de dividir e separar papéis, mas sermos complementares.

Fazemos a Marcha das Mulheres, por exemplo, mas sempre convidamos os homens para conhecer o que estamos fazendo. Quando lutamos pelo combate à violência, são eles que têm de escutar, eles que tem de mudar. Eles também precisam estar perto, construindo junto, senão a discussão fica fechada em nós mesmas. Na última marcha quase metade dos participantes eram homens. Eles fazem questão de vir para fazer segurança, para cozinhar para nós, sabendo que o palco não é deles. Eu mesma falo toda vez: “O microfone é das mulheres, homens não podem nem dar um recado. A hora é nossa”.

Eu acho que não tem mais como mudar o pensamento das pessoas dessa geração. Elas podem até se tornar mais sensíveis, mas não vão ter organicidade para entender e abraçar essa causa. Para mim, o investimento precisa ser nas crianças e na juventude atual, para podermos mudar uma geração inteira. Isso precisa estar muito estabelecido no sistema educacional, desde o ensino básico até a universidade. É impressionante como as escolas ainda não mudaram seus currículos e continuam com livros didáticos que tratam os povos indígenas como povos do passado. Se você conversar com uma criança das primeiras séries, elas falam “os índios usam pena”. É uma imagem bem estereotipada do “índio” de cara pintada celebrado no 19 de abril, e não dos “indígenas” – uma mudança que já está reconhecida até na Constituição. É inadmissível essa reprodução de uma história de 1500 sem falar do indígena presente hoje, das lutas, dos desafios e dificuldades enfrentados. Temos uma lei que estabelece o ensino afro-indígena na escola, a Lei 11.645, de 2008, mas essa lei não é implementada por falta de professores especialistas para tratar esse conteúdo nas escolas.

Essa lei precisa ser aplicada. As escolas precisam abrir espaço para os indígenas falarem. Elas só reconhecem como professor aquele que tem o diploma acadêmico. Tanto a escola básica quanto a universidade precisam abrir espaço para o indígena falar da sua história, diversidade, cultura... É conceber o conhecimento tradicional indígena como saber. Hoje já avançamos um pouco, eu sou chamada para várias universidades. Nós estamos indo como palestrantes e convidados, o que já é um avanço, mas não é o suficiente. Os indígenas precisam estar também nos quadros de professores. Os indígenas que se formam nas universidades também precisam ocupar o papel de professor, de diretor, de reitor. Por que o indígena não pode? Ele deveria concorrer como igual, mas isso ainda não é visto como normal, ainda é estranha essa presença. O primeiro passo é a abertura dos estabelecimentos de ensino para conseguirmos mudar a próxima geração; dos que já estão com a cabeça formada precisamos nos aproximar e formar parcerias.


De fato, esse governo trouxe muitos prejuízos. No primeiro dia de governo, Bolsonaro já atacou os direitos indígenas estabelecendo uma portaria acabando com a FUNAI, tirando a demarcação de terras indígenas e nos colocando sob jurisdição do Ministério da Agricultura, que é comandado pela bancada ruralista. Ali ele materializou o que prometeu em campanha: que não haveria em seu governo nem um centímetro de terra demarcada para os indígenas. Tudo o que era ameaça de campanha virou política pública. Como se não fosse suficiente, ele abriu precedentes para reaver territórios já demarcados. Esse foi o primeiro e o pior ataque, porque para nós o território é essencial para manter a nossa existência. Ele já fez um desmonte não só de direitos, mas do próprio futuro dos povos indígenas.

A política ambiental também foi totalmente desmontada por meio de projetos de leis que flexibilizam a legislação ambiental e permitem grilagem e desmatamento. O ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales, foi nas regiões onde havia denúncias e, ao invés de punir os invasores, ele anistiou multas dadas pelo IBAMA. Aquele pronunciamento dele na reunião secreta, de aproveitar a pandemia para “passar a boiada”, parece cena de um filme de ficção. O governo Bolsonaro é um governo de destruição. Não é aleatório, não é porque ele não sabe fazer; ele sabe bem o que quer e como se articular. Ele é porta-voz do agronegócio, da exploração predatória, do garimpo ilegal, da mineração e da grilagem de terra.

Em 2022, estamos em total apoio a Lula, entendendo que é o que temos no momento para derrotar Bolsonaro. É urgente, precisamos tirar Bolsonaro do poder e seguir apoiando o governo, como movimento social, para tirar o bolsonarismo de dentro das instituições. As instituições estão impregnadas com esses pensamentos, se não forem renomeadas não teremos um governo capaz de reconstruir.

Outra coisa importante é fazer um trabalho intenso para trocar os parlamentares aliados de Bolsonaro. Estamos trabalhando duramente para eleger bancadas diversas, que representem os povos, as culturas, a sociedade. É preciso uma mudança estrutural. Estamos apoiando Lula não por enxergarmos nele a salvação para tudo, mas porque queremos participar, incidir e ter opinião direta em uma futura mudança.Muitas pessoas nos questionam sobre o que Lula fez ou deixou de fazer quanto à demarcação das terras ou à construção de Belo Monte, mas uma coisa é ter um governo que diverge em opiniões, outra é ter um governo inimigo declarado, que mata, que reforça o fascismo, que incita o ódio. Com Bolsonaro, hoje, você está apoiando um autoritarismo que vai seguir com essa política de destruição. A hora agora é de lutar para não perder a democracia que conquistamos.

Nós temos esses dois tipos de violência: a que é escancarada, que alarma todo mundo, o tiro, o estupro, os conflitos permanentes; e a negligência, ou até o planejamento da omissão. Tem um planejamento para não atender. Esse caso da criança Yanomami foi alarmante, com repercussão internacional, e as pessoas estão olhando para esse caso agora. Mas esse é apenas um retrato do que acontece diariamente em todos os territórios, por causa da falta de segurança, da falta de proteção.

Antigamente, dizíamos que a nossa maior luta era demarcar terras indígenas. Continua sendo, a não demarcação é também uma violência. É uma ação do Estado, silenciosa, mas igualmente violenta. Sem a segurança da terra, estamos sujeitos a conflitos diários. Continua sendo nossa bandeira principal porque temos hoje 13% do território nacional como terra indígena, mas, desses 13%, 97% estão na Amazônia.

Nossa outra prioridade é a segurança nos territórios já demarcados, porque o discurso de ódio do governo Bolsonaro acaba incitando as invasões. As pessoas praticam as invasões se achando autorizadas, o que acaba gerando insegurança. Antes, ter a sua terra demarcada era uma segurança, hoje os indígenas são mortos dentro de seu próprio território. A outra questão é garantir as condições, as políticas públicas, que possam dar aos indígenas as condições para fazer a gestão desses territórios. A falta dessas condições gera pobreza, insegurança alimentar, ataques e saída dos indígenas para outros lugares. Alguns saem para as cidades sem terem condições.

São muitos os tipos de violência que as pessoas não enxergam como tal. Não demarcar terra é a maior de todas as violências. Nós sentimos diretamente em nosso corpo. Essa aliança para expandir o agronegócio não é apenas uma violência do conflito, mas também reflete no veneno que é colocado nas lavouras, e segue contaminando a água, o ar... O garimpo ilegal, a mineração, tudo isso mata e também contamina a água e os rios. Lá na terra Krenak, eles falam que hoje as crianças não podem mais nadar ou comer o peixe do rio como antes faziam. Não há violência maior do que essa causada pela mineração. No território Munduruku, por exemplo, comprovadamente 70% das pessoas estão contaminadas por mercúrio. Tudo isso são violências que só nós sentimos. Quem está de fora não enxerga essa violência. Precisamos de políticas públicas que atendam essas especificidades. Não adianta uma política ambiental universal. 

O Marco Temporal é um dos maiores ataques aos direitos indígenas e à Constituição. Se aprovado, será uma tragédia para nós e para toda a população. O Marco é uma negação à ocupação original dos territórios indígenas. Ao estabelecer o 5 de outubro de 1988 como a data base para se confirmar a presença física indígena nesse território, nega-se tudo o que aconteceu para trás. Essa tese é um dos maiores absurdos porque fere a Constituição Federal. A Constituição diz: são reconhecidos como território indígena aqueles tradicionalmente ocupados pelos indígenas. O Marco e o Projeto de Lei 490 reconhecem como território indígena somente aquele em que for comprovada a presença física desses povos a partir de 1988. Por muitas razões os indígenas não estavam ali nessa época. Esse não é o fator principal para se comprovar, o que comprova é presença ancestral e essa ocupação tradicional.

Estamos muito ansiosos para o julgamento do Marco; será o julgamento do século. Está marcado para recomeçar em 23 de junho de 2022. Esse resultado é o que vai orientar o futuro da demarcação de terra indígena no Brasil. Se o resultado não for favorável, teremos de replanejar nossas estratégias de luta, porque não vamos aceitar a negação de nossos territórios. Há uma articulação no Congresso para que aprovem essa medida e para que o território indígena seja entregue para a exploração. 

Em um momento em que estamos discutindo os efeitos das mudanças climáticas e que não podemos permitir que o planeta aumente a temperatura em 1,5º C, todas essas medidas vão na contramão do que deveria ser feito. Um dado pode nos ajudar a aproximar a sociedade não indígena da importância desses territórios: nós somos apenas 5% da população mundial, mas 82% da biodiversidade protegida está em nossos territórios. As pessoas precisam entender isso como o que garante a vida de todos. Se não defendermos os direitos indígenas, os seus modos de vida estarão em risco. Se os modos de vida indígenas estão em risco, a humanidade inteira também está. Será que você vai sobreviver se não tiver mais água? A maioria das nascentes estão em terras indígenas.

Então, a demarcação impacta a vida de todos. A imprensa, nós e os pesquisadores precisamos falar sobre isso para reforçar o sentido dessa luta. A biodiversidade é o que garante a vida e quem está protegendo-a são os povos indígenas; os que mais protegem são os mais atacados.

A luta por direitos é importante, pelo meio ambiente, moradia, saúde, educação, comida. Mas estamos entendendo que tudo isso só poderá acontecer a partir do reflorestar das mentes. Lançamos essa iniciativa na Marcha das Mulheres: “Reflorestar mentes”. Trata-se do reflorestar das ideias, do pensamento e, principalmente, dos corações. Precisamos de uma sociedade com mais amor, mais afeto, mais solidariedade entre as pessoas. Precisamos acabar com o individualismo. O sentido da vida é o coletivo.

Se você reflorestar seu coração, disseminar o amor, adquirir essa consciência política e ecológica, entendendo que isso influi no seu futuro, você vai naturalmente reflorestar os territórios. Reflorestar os territórios para garantir a vida no planeta. A chamada é para reflorestar mentes de toda a humanidade para salvar a mãe Terra.