EDUARDO SOUTO DE MOURA

11/06/2014 - Porto, Portugal - Esta conversa aconteceu na ocasião de uma visita informal ao escritório do arquiteto português Eduardo Souto de Moura, no Porto. A visita foi marcada por Maria Filomena Moura, filósofa e prima do arquiteto, a quem registro meu agradecimento. Souto Moura generosamente mostrou seus projetos, desenhos, maquetes; e de maneira espontânea começou a falar sobre sua formação, sobre sua relação com Fernando Távora, com Alvaro Siza, entre outros assuntos tão caros, e perguntou se eu desejava gravar a conversa, transcrita e editada abaixo. [Ana Altberg]

Eduardo Souto de Moura - Bom, o que posso dizer... fui aluno do Fernando Távora. Tive a sorte de estudar numa escola de arquitetura em um cenário muito inovador e experimental. Nas aulas, desenhávamos as interseções dos materiais, da madeira, do metal, da pedra; tínhamos que desenhar o som, atirando pedras contra metal; tínhamos que lamber a madeira e a pedra para saber o sabor que tinham. Depois, chegava à casa, encontrava meu pai à mesa que perguntava “O que fizeste hoje?” - eu respondia “Lambi pedras”. Aí ele dizia pra minha mãe “Este aí vai morrer de fome, nunca vai dar a fazer nada da vida, a lamber pedras.” Meu pai era muito conservador, dizia que íamos acabar comunistas. (risos) Essa formação da escola foi muito boa, o Távora foi um grande professor. Não era bem uma escola formal, eram mais conversas - convivíamos, almoçavamos com o professor, íamos ver uma casa não sei onde, falava-se da viagem, ficava-se pra jantar, era assim meio light. Depois daquilo eu era um teórico, não fazia nada de prático. Um dia um professor me pediu um projeto e eu não sabia fazer. Ele disse que me chumbava, fiquei preocupado, um colega disse que era para ter um bocado de prática e que o [Álvaro] Siza estava precisando de um colaborador. Então fui para o Siza.

CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio.

Eduardo Souto de Moura - Bom, o que posso dizer... fui aluno do Fernando Távora. Tive a sorte de estudar numa escola de arquitetura em um cenário muito inovador e experimental. Nas aulas, desenhávamos as interseções dos materiais, da madeira, do metal, da pedra; tínhamos que desenhar o som, atirando pedras contra metal; tínhamos que lamber a madeira e a pedra para saber o sabor que tinham. Depois, chegava à casa, encontrava meu pai à mesa que perguntava “O que fizeste hoje?” - eu respondia “Lambi pedras”. Aí ele dizia pra minha mãe “Este vaí ai morrer de fome, nunca vai dar a fazer nada da vida, a lamber pedras.” Meu pai era muito conservador, dizia que íamos acabar comunistas. (risos)

Essa formação da escola foi muito boa, o Távora foi um grande professor. Não era bem uma escola formal, eram mais conversas - convivíamos, almoçávamos com o professor, íamos ver uma casa não sei onde, falava-se da viagem, ficava-se pra jantar, era assim meio light. Depois daquilo eu era um teórico, não fazia nada de prático. Um dia um professor me pediu um projeto e eu não sabia fazer. Ele disse que me chumbava, fiquei preocupado, um colega disse que era para ter um bocado de prática e que o [Álvaro] Siza estava precisando de um colaborador.

Souto Moura - Isso foi em 1974-75, eu tinha 21, 22 anos. Pois, o Siza foi a pessoa que começou a me explicar o que era arquitetura, não por conversa, por outro estilo, assim percebi que arquitetura não era profissão, mas era uma maneira de viver. Tínhamos que estudar, viajar, procurar, copiar, desenhar. Só se podia fazer uma pergunta ao Siza desenhando. Uma dúvida falada ele respondia “Não estou a perceber”, então tínhamos que desenhar em casa à mão, e no dia seguinte trazer o desenho para perguntar de novo.

Trabalhei 5 anos ou 6 com o Siza. Mais do que o arquiteto, foi a pessoa que me marcou - a maneira como ele vivia, como via o mundo, sua maneira obstinada e ética; o comportamento da pessoa que me fez, a maneira como ele encontrava as soluções. Se não tinha jeito, vamos fazer isso e aquilo e ver se chegamos lá.

Logo depois que saí, comecei a ganhar uns concursos - o que me deu dinheiro para montar um escritório. No princípio fazia umas obras familiares. Mas, na verdade, nunca deixei de trabalhar com o Siza.

Souto Moura - Tem o Távora que está fechado, depois é o Siza, depois sou eu. Tem um outro andar embaixo das maquetes, são engenheiros. E está o filho do Siza, o Alvarinho, a trabalhar no último piso, fez um escritório pra ele. O Cavaca está aqui deste lado. Neste prédio o Siza está no penúltimo andar, e no prédio das nossas casas é ao contrário, ele está por baixo e eu por cima.

Souto Moura - Todos os dias. Tem alguns colaboradores meus que trabalham para o Siza em trabalhos comuns. O Siza quando tem dúvidas vem cá abaixo e pergunta, ou então eu vou lá acima. E quando vem abaixo ele vê meus projetos todos e pergunta “Quê isso? E isso, é o quê?”. Era muito bonito quando o Távora era vivo, ao fim da tarde eles vinham descendo, isto aqui era opened e ficávamos a conversar.

Fizemos um projeto comum em Viana do Castelo. O Távora fez um plano urbano junto ao rio com três projetos. Ele fez o do meio; deu um ao Siza, a Biblioteca de Viana, em cima da água; e um a mim, o Centro Multiusos. Ele não entendia o que era e disse “O Centro Multiusos fica para o Souto Moura, que é mais novo e vai perceber o que é aquilo, já não é pra mim”. Toda semana havia reuniões no escritório do Távora e cada um levava a maquete para discutirmos, fizemos regras: alturas, alinhamentos e materiais todos iguais. Logo depois o Távora morreu - foi uma espécie de despedida: “Estou velho, cansado, doente, e portanto vou fazer um trabalho com meus amigos”. Foi bonito.

Souto Moura - Ah, fazíamos. Jantávamos juntos quase todos os domingos, com as respectivas famílias. Começamos a procurar terreno e fomos fazer o escritório, que foi uma maneira de nos ligarmos cada vez mais. O Siza trabalhou com o Távora muitos anos, o Távora foi meu professor. Eu fui assistente do Siza por tantos anos. Então, aos domingos íamos tratar das novidades e fazer as contas para pagar o empreiteiro - o Cavaca que fazia essa negociação.

Nesse convívio, organizávamos temas, dizíamos “Quero ver as obras do Mies Van Der Rohe”, então íamos todos de avião, de caminhonete ver as obras do Mies Van Der Rohe. Depois fomos a Macchu Picchu; fomos aos templos gregos no Peloponeso, que o Távora queria conhecer; fomos ter na Grécia; íamos à Sicília com o Siza que trabalhava lá. Quando trabalhei fazendo metrô, visitamos todos metrôs; quando fiz um estádio, visitamos todos os estádios. Fomos a tantos sítios, fomos ficando cada vez mais amigos. Era agradável.

Souto Moura - O Siza é mais velho que eu 20 anos, e o Távora era mais velho que o Siza 10 anos. Quando eu fazia projeto de restauro, ia sempre mostrar ao Távora. No começo do projeto para o Mosteiro [Santa Maria do Bouro], eu queria domesticar aquilo, achava que era um animal selvagem. Eu era violento, tentava contrariá-lo, mas depois criei uma empatia. Comecei a ver que às vezes há um despropósito contra-natura nos projetos, as pessoas não têm que assinar tudo, fazendo sempre projetos enormes. Os arquitetos não têm nada que andar a massacrar a paisagem.

E com a União Européia, Portugal pensou que ficou rico. Entrou dinheiro, fez auto-estradas, fez Expo em Lisboa, criou maus hábitos. E depois, como vocês dizem, "caíram na real," percebemos que não tínhamos dinheiro. Arquitetura precisa de dinheiro. Arquitetura não é uma arte, não pode ser uma arte social. Esta é uma conversa que tenho sempre com o Siza, ele diz que é uma arte. Mas é uma arte que precisa de muito dinheiro, uma arte que tem que funcionar. O Niemeyer dizia que arquitetura tem que ser bonita, e se funcionar, melhor (risos). Mas a arte tem que ser autônoma, não tem que dizer, não precisa significar nada. A musica "dó, ré, mi, fá, sol" não tem que significar nada. A não ser que seja um hino, mas hinos não fazem parte da História da Música. Mas então, deixou de haver encomenda e produção na arquitetura - os privados tinham medo de investir e o Estado... coitado.

Souto Moura - Não, começou antes. Desde 2005 já havia alguns sintomas. Porque a arquitetura é um comboio que acumula muitas paradas, quer dizer, tem muita gente e muito dinheiro envolvido. E quando há crise, o balanço é que o prejuízo é maior se suspender do que continuar, uma obra não pode parar, pois o começo é muito mais caro. A crise foi se arrastando e os arquitetos migraram todos. Os espanhóis fecharam 80% dos escritórios, foram para a América Latina; os portugueses foram para os países chamados de economias emergentes onde falam português - Moçambique, Angola, Brasil. Os arquitetos portugueses recém-formados são respeitados na Europa, encontram emprego. Fui na semana passada à Genebra [Suíça], há lá 160 arquitetos portugueses, e 120 mil portugueses nesse momento. 

Souto Moura - Tem, mas não funciona bem. Acho que há um problema entre os portugueses e os brasileiros. Acho que o problema, o sentimento, colonial ainda não está bem resolvido. Nota-se que há um protecionismo brasileiro e português. Vieram muitos dentistas brasileiros para Portugal e foram desautorizados, não puderam ser dentistas. E os engenheiros portugueses - nossos engenheiros são o melhor que há, trabalharam com Rem Koolhaas, com Paulo Mendes da Rocha, os que tem escritório no Brasil precisaram fazer exames porque o título profissional não era reconhecido. Há um sentimento de defesa que implica uma animosidade qualquer, técnica e financeira.

Souto Moura - Sim, a economia brasileira é muito protecionista. Já apareceram vários projetos no Brasil eu não aceito porque pagam muito menos que cá, e ainda por cima, se eu aceitasse ficaria com praticamente um terço dos honorários. Isso funciona se eu for lá viver, fora do Rio e São Paulo porque lá há muitos arquitetos. Há muitos outros sítios no Brasil que estão em desenvolvimento. Tive convites para projetos em alguns sítios no Brasil e nunca me interessei exatamente pelos prazos. No fim, isso é um jogo viciante para arquitetos: pagam mal, mas o tempo é tão curto que acabam por pagar bem e os arquitetos aceitam.

Então, eu migrei na Europa, para países onde tem mais trabalho. Tenho obras neste momento na França e na Suíça. Fiz uns laboratórios da Novartis em Basileia [Suíça]. Na França faço habitação, uma coisa que é teoricamente interessante, com mixité. Quando há um empreendimento, há uma cota de habitação protegida [social], outra parte de habitação pra vender e outra para escritórios. Nunca é um sistema único, com só uma camada social. A cidade não fica dividida em apartheids, entre pobres e ricos; e evita-se áreas só de escritórios, onde a partir das cinco da tarde as ruas ficam desertas. Acho que a intenção não é má, cruzar é interessante, se fizer habitação para pobres na periferia tornam-se guetos. O lucro do que vender compensa o subsídio da habitação social. Agora, quem domina isso são os grandes construtores, três ou quatro monopólios na Europa. Uns tem mais ética, outros menos, mas o problema é que tudo está entregue às grandes empresas: automóveis, remédios, a construção. O chamado pequeno empreiteiro acabou, são comprados, absorvidos, e participam das regras.

Souto Moura - O inferno está cheio de boas intenções. Os políticos cada vez mandam menos e as finanças cada vez mandam mais. Em Paris há uns truques que são assim: as pessoas inventam dois temas pra fingir que são muito rigorosas - "ecologia e patrimônio", os temas da moda. A forma da "ecologia" é só dinheiro. Tudo que é ecológico é caríssimo, comprar uma camisa de algodão ou de seda é muito mais caro que comprar uma camisa de lã; isolar com a cortiça é muito mais caro do que com derivados do petróleo; fazer uma casa de madeira é muito mais caro que fazer com tijolo. Portanto, a ética e a vocação ecológicas são, no final, uma fonte de negócios. Os laboratórios na Suíça, que são tão ecológicos, ficaram tão caros que dava pra fazer um bairro social inteiro no Porto, ou em Lisboa. Aproveitar água, fazer poços no terraço, um litro d'água da privada nesse sistema custa mais que a água de Vichy. É bonito, mas pecisa-se de muito dinheiro.

Em Portugal, o cimento baixou o preço 10%, então quer dizer que há 10% menos construção e implica logo 10% menos emprego porque construção é a grande atividade. Com a crise, há pouca consciência política e social. O empresário não investe, não está interessado em habitação social. A política liberal está a governar a Europa. No Brasil parece que é diferente, não sei. Na Europa, neste momento, existe uma tendência neoliberal em que a habitação é feita pelo mercado e as pessoas tem acesso ao crédito. Mas o banco não empresta para os pobres. Está tudo parado, e quando existe algum projeto, há exigências enormes porque essas tais legislações saem muito intencionadas pela palavra "ecologia", que transformou-se em "dinheiro". Os meus colegas maoístas de esquerda, acabaram todos ecológicos. Eram vermelhos e passou tudo ao verde (risos). Por exemplo, o presidente da União Europeia, Durão Barroso, que é português, era presidente do MRPP [Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado], dos estudantes maoístas da minha época.

O Brasil agora também tem uma presidente que foi guerrilheira durante a ditadura militar.

Souto Moura - O Brasil não está muito contente com a Presidente, não é?

Ela não é tão popular, mas acho que vai vencer as eleições [2014] novamente. Há um sentimento de insatisfação geral no Brasil agora.

Souto Moura - É? O Lula era mais popular, não é?

Muito mais, ele é um líder histórico, muito carismático. Mas pelo que vejo no Brasil, ainda mais tendo trabalhado nos Jogos Olímpicos, é que essas as grandes corporações e construtoras detém todo o poder de decisão nos projetos. Parecem estar acima do Governo.

Souto Moura - Fui educado e habituado para ter muito tempo para pensar nas soluções. Sempre trabalhei com uma equipe, sempre vamos tentar fazer o melhor. A equipe mantém, mas hoje não há tempo. Com pouco tempo, estamos ainda a tentar fazer o mais barato por parte dos arquitetos. Antigamente havia uma espécie de aristocracia industrial, que eram as novas classes emergentes com dinheiro industrial. Isso acabou, hoje não podemos entregar a essa equipe ou a esse construtor que fazem muito bem; hoje o critério é apenas entregar ao mais barato. E a regra é que o mais barato é o pior. Tenho uma certa desilusão, as respostas tem que ser muito rápidas, nunca querem nada porque acham tudo caro. Para as habitações sociais na França, as paredes entre os quartos tem 5cm, não tem nem 10cm. Se eu dormir e encostar em um condutor elétrico, passo a noite eletrocutado. (risos)

Se moras num prédio novo, ouves tudo quando o vizinho treme os lençóis, não dá pra dormir. Mas também me aconteceu uma vez, na primeira casa que aluguei que tinha assoalhos de madeira. O vizinho de cima era um tipo simpático, amigo da minha mulher, mas ouvia-se tudo! Um dia que encontrei ele nas escadas e eu disse “Rapaz, tens que ter mais cuidado porque ouve-se tudo, pá!”. E ele "Pois, ontem à noite... perceberam que era a fulana?", e eu disse "Não, pois estes sons são universais!". (risos)

Contudo, não pode-se dizer para uma nova geração que era bom e agora vai mal. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que o mundo melhora, há menos gente com fome, há mais trabalho, menos guerras civis. Há muitos problemas, mas o balanço é positivo. Há coisas que antigamente aceitavam como normais, sou da época em que as empregadas não podiam andar calçadas. Mesmo se tivessem dinheiro para comprar, as mais velhas mandavam tirar os sapatos senão pareciam patroas. E havia uma comida para os patrões e outra, tipo rancho, para os empregados.

Portanto, o que vai acontecer - não é para o meu tempo, mas para o seu e das minhas filhas - é que vai haver outra atividade, parecida com a arquitetura, mas que não vai ter nada a ver com aquilo com que fui habituado. E que vai ter a mesma dignidade ou o mesmo interesse, por outros motivos. O que é muito bom. Antigamente as pessoas iam no alfaiate comprar os sapatos e sapatilhas, hoje vão nas lojas e compram pronto. Arquitetura vai ser assim, massificada, mais barata. Depois, quem quiser manda fazer uns sapatos à mão, ou uma casa com um arquiteto muito específico. As cidades vão ser construídas de outra forma, com regras econômicas às quais as novas gerações vão ter que se habituar.

Tenho amigos engenheiros trabalhando no Brasil, e pediram que apresentassem em uma semana um estudo de áreas e uma imagem de um projeto para torres, num terreno onde hoje há casas. Em uma semana não dá. Portanto, tem que se haver uma formação diferente para os arquitetos poderem dar esse tipo de resposta. Quando fiz o Estádio de Braga, tive uma consultoria com o Arup, são tipos mundiais, e eles tinham um armário de estádios prontos para cada tipo de terreno, se é inclinado toma esse, se é plano toma esse.

Souto Moura - Só com pessoas que não se importam em esperar e que tem dinheiro, é fora da média. Uma porta normal custa cem euros, e uma porta de pivô destas são mil euros. Dez vezes mais caro.

Souto Moura - No Brasil conheço Brasília, São Paulo, Rio, Salvador e algumas cidades menores. Tenho agora uma hipótese de fazer um museu de arte contemporênea em Salvador. Fui visitar, dei ali uma volta no Pelourinho e todos diziam “Não vá praí, não vá pra lá que é perigoso..”. Achei um bocado falso, um bocado cenográfico aquele restauro do Pelourinho. Gostei muito do museu da Lina Bo Bardi [Museu de Arte Moderna da Bahia], belíssimo. E para mim, a arquitetura paulista é a melhor que tem. Copio tudo da arquitetura paulista, no sentido de que estudo e penso em cima. Agora, o Rio é perigoso porque é demasiado bonito. Fui conhecer Niemeyer, conversamos bastante. Adoro Brasília, que dizem que é uma cidade onde não se pode viver, demasiada moderna, mas todas as pessoas com quem falei gostavam muito de viver lá. Gosto muito das quadras, gosto muito do projeto moderno. Estive a perceber aquilo, aqueles lagos... vou lá outra vez, sozinho, porque tenho que fazer uns prédios e vou estudar aquilo. Quero dormir no Hotel Brasília, que é minha obra preferida do Niemeyer.

E além de admirar muito, sou muito amigo do Paulo Mendes da Rocha, ele é maravilhoso como pessoa. É isso que eu digo: o Siza não sei se me impressiona mais a pessoa em si ou o arquiteto. E o da Rocha também. Então, penso assim, será que as duas coisas podem estar separadas? Pode haver um bandido que é bom arquiteto?

Souto Moura - Não, a arquitetura do Porto floresceu por causa de uma pessoa: o Siza. Começaram a gostar do Siza e tentar perceber como aparece num país marginal um arquiteto tão relevante. Depois, como ele não tem nenhuma teoria, nem vendeu uma doutrina, foram estudar seu passado. E para se perceber o Siza, tens que se perceber o Távora, estudar a formação do Távora. Távora casou e depois foi dar a volta ao mundo por um ano. Fez um percurso diferente, foi para os Estados Unidos, para o Japão, foi estudar.

Historicamente em Portugal, os movimentos e estilos de arquitetura são parecidos com o resto da Europa, mas sempre um bocado atrasados. O que dá uma certa originalidade, aquilo já está gasto. Há o barroco português; o gótico português; o manuelino; há cá uma especificidade dos estilos. E o Távora foi o primeiro interveniente na produção de toda uma vanguarda mundial europeia. Ele foi protagonista desse movimento aqui, abriu as portas a Portugal - um país que está isolado durante o Fascismo. Ele apresentou uma maneira de ver e fazer diferente, junto com o Team X, que chamavam de "juventude do movimento moderno". Eles contrariavam um pouco o Le Corbusier - é a psicanálise, critica-se o pai, há que se matar o pai. E com o Siza, pode-se dizer que fundou-se uma arquitetura à Siza, uma fusão entre moderno e pós-moderno. A partir daí, o mundo inteiro começou a se interessar por arquitetura portuguesa.

Souto Moura - Não. Até porque esses arquitetos devem ter pouquíssimas coisas no Porto, a obra do Siza é feita fora.

A arquitetura do Porto, que você falou que é uma fusão de moderno com pós-moderno, tem uma espacialidade muito diferente da arquitetura moderna - parece menos racional, menos transparente, mais complexa, mais misturada ao terreno.

Souto Moura - Aqui é muito úmido, como podemos ver: está a chover. Temos algumas vantagens quando dizemos que estamos atrasados em relação aos movimentos de vanguarda europeu e americano, pois quando introduzimos essa tendência ela já está em parte ratificada. A grande crítica ao movimento moderno é que é uma linguagem que dizia que a casa é uma máquina neutra, e portanto a cultura e a história não participavam nessa linguagem. Quando chegou cá, essa linguagem já estava gasta, já tinham visto os defeitos do pós-guerra na Europa. Foi o Távora, e o Team X que fizeram tal movimento: dizer que por mais vantagens que o movimento moderno tenha, a cultura do nosso país tem que ter uma continuidade.

A Faculdade de Arquitetura do Porto [FAUP] do Siza, por exemplo, tem uma espacialidade muito enigmática, quem está fora do edifício não faz ideia do que há dentro daquele espaço.

Souto Moura - Isso faz parte dos temperamentos, o Siza é uma pessoa introvertida, já eu sou mais expansivo. Chego à casa, minha casa está sempre aberta, janelas abertas, luzes acesas, ouço as minhas filhas, os pivôs das portas batendo. Já no Siza, está tudo fechado, silencioso. Sua arquitetura é intimista. Acho que a parte psíquica e fisiológica dos arquitetos também têm muito a ver com sua arquitetura. Por exemplo, as cadeiras do Mies Van der Rohe são tão grandes que para levantar tenho que forçar meu centro de gravidade, depois quando vi, o Mies Van der Rohe tinha 1,98m de altura! Já Le Corbusier, era pequenino, e percebe-se em suas cadeiras, fica-se mais apertado.

Souto Moura - Foi um concurso público de projetos que ganhei - eram 13 estações. Como não queria fazer os projetos todos - não queria e não devia, acho que tem que ter várias mãos, tem que ser múltiplo, não pode ser uma ideia fixa -, então organizei uma lista de arquitetos e distribuí.

Dei a Estação de São Bento ao Siza, que ficou muito bonita. Também gosto muito da Estação da Casa da Música, que tem luz natural; da 24 de agosto que tem uma ruína lá dentro. Na do Siza tem uma coisa com graça, a te explicar: tu entras e vês as colunas, passando entre elas, pelo meio. Se for olhar por trás das colunas, passando por fora, tens desenhos eróticos do Siza.

Souto Moura - Gosto muito de fazer casas, podia fazer arquitetura só com casas. Geralmente os clientes ficam amigos meus, são muitos anos de convívio e de intimidade. Tens que perguntar sobre tudo, como dorme, o que faz quando acorda, não por curiosidade, mas porque tens que saber. Há assim uns fetiches, todas as pessoas. Mas tem muita graça, os homens nunca explicam seus fetiches, têm vergonha, são mais covardes. Dizem "Ela que não gosta e quer assim", depois descobre-se que não era ela, era ele. Há também muitos divórcios nas casas. Geralmente a casa nova fica pra senhora e o homem sai, porque tem mais culpas, está mais complexado, não sei. E porque quando a casa é nova muitas vezes a mulher interessa-se mais pela casa em si, vai mais ao escritório falar do projeto e o homem fica na retaguarda.

Fiz um projeto de uma casa que perguntaram-me se eu preferia receber ou se queria um terreno. O terreno era um triângulo, pensei "faço uma casa em triângulo, quando chegas ao fim do quarto tem um bico, e não faço nada" (risos). Aceitei o triângulo, comecei a construir casa com os pedreiros do mosteiro que estavam desempregados. Comecei a fazer um muro de pedras, comecei a construir uma casa pátio. Queria ir pra lá viver, mas a minha família não quis, preferem viver na Foz, então fiquei. Afinal, as pessoas são mais importantes que as pedras. (risos)

Souto Moura - Vai ser diferente, as pessoas tem que ter consciência de que vai ser diferente. Há um escritor maravilhoso, o Ítalo Calvino, conheces? Ele tem um livro que é uma maravilha: Seis lições para o próximo milênio [Seis propostas para o próximo milênio, versão brasileira]. São umas conferências em Harvard, onde ele dá vários atributos, diz "O futuro vai ser com esses seis atributos" [leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência]. As coisas vão ser mais complexas nesse sentido, vão ser mais simples nesse, é uma aproximação. Acho que a arquitetura vai ter muito daquelas coisas. Por exemplo, ele diz que a produção vai ser mais leve, as pessoas vão dispender menos energia a fazer as coisas, é um sinal de inteligência. Tudo está a ser desmaterializado. E a arquitetura também.

A arquitetura é sólida, mas tens a pedra, depois tijolo, depois, depois betão [concreto], depois o vidro. E isto é resposta física à desmaterialização. A arquitetura não é só física, funcional.

Souto Moura - Não tenho paciência para aberturas. Tenho lá uma escultura grande, se quedar irei mais tarde. Há dois anos fiz uma coisa que adorei, fechei o Grand Canal com um espelho no meio. Quase fui preso porque virei os barcos todos. Os barcos não tinham licença pra descarregar, portanto eles tinham que fazer assim. Depois fui chamado ao Consulado para dizerem que não podia fazer aquilo sem licença. Então ficaram os barcos e os gondoleiros todos parados. Depois, mal montei o espelho do prédio, puseram uma ordem de demolição do prédio no tribunal, mas aquilo felizmente não é rápido.

Mas na Bienal Veneza, lá foste? O Koolhaas deu uma entrevista furioso a dizer "por que os portugueses não estavam lá?". Eu participei numa exposição privada. Já tiveram um pavilhão que se alugava, era projeto do Alvar Aalto, depois alugavam o tal palácio no Grand Canal, onde eu fiz o espelho. Aquilo pertence a uma condessa qualquer, e atrás havia uma outra condessa que taparam a vista né, abriu a janela e viste o espelho, então veio ter comigo no tribunal.

Li um artigo sobre a Bienal de Veneza, o título era o "fim da arquitetura", com diferentes pessoas escrevendo, um tema que nós estamos a falar muito hoje.

Vi que o Peter Eisenman deu umas declarações sobre a Bienal, que o Koolhaas estava atestando o fim da carreira dele.

Souto Moura - Pois... e o Eisenman é que nem começou! (risos)

Telefone, deve ser a Pia, hora do almoço!